Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

CAPÍTULO 9


            Eu e Inácio combinamos de não mantermos contato no período em que ele estivesse na Itália, exceto se fosse uma emergência. “Combinamos” é modo de dizer. Foi ele que quis assim. Pedi apenas que me avisasse que tinha chegado bem, e ele enviou uma mensagem. Já tinha chegado a Roma e estava a caminho de Positano, na Costa Amalfitana, onde Enrico morava.

            Sua mensagem me remeteu há quatro anos, quando fizemos aquela viagem juntos. Depois de 11 horas de voo, chegamos ao Aeroporto Fiumicino, em Roma, onde pegamos o Leonardo Express até a Estação Central Termini. De lá, tomamos o Eurostar para Nápoles. Mais uma hora de viagem e chegamos à Estação Napoli Centrale, onde Enrico nos apanhou, para seguirmos até Positano.

            Naquele momento, Inácio deveria estar fazendo o mesmo trajeto, só que sozinho. Pensar naquilo me deprimiu ainda mais.

            Passei o dia arrumando minhas coisas e, no final da tarde, fui para a Vila Mariana. Preenchi o vazio do percurso com um dos CDs do Coldplay. Quando atravessei os portões do condomínio, In My Place começou a tocar. Muito apropriado.

            Estacionei na frente da casa, desci do carro e me detive para admirar a Vila Mariana. A construção, de aspecto centenário, parecia particularmente encantadora em contraste com o entardecer.

            Não notei a aproximação de um homem. Só quando ele já estava ao meu lado é que o vi. Tomei um tremendo susto. Não tanto pela abordagem silenciosa, mas pela aparência física do luthier, que, visto de perto, era assombrosamente atraente. Nada nele parecia simétrico. Era bem alto, moreno, tinha cabelos pretos e ondulados, um nariz destacado e a boca avantajada, com dentes brancos contrastando com a pele bronzeada. Se você analisasse cada parte em separado, poderia achar que a genética não tinha sido generosa com ele. Mas o conjunto era impressionante. Imponente. Inebriante, até. Ele parecia um grego. Não vou acrescentar um “deus”, porque ficaria muito clichê. Mas era isso o que ele parecia.

-        Boa noite! - ele me saudou.

-        Oi! - eu respondi, sem graça.

-        Precisa de ajuda com a sua bagagem?

-        Ah... Claro!

            Ele pegou a única mala que eu tinha levado, e eu carreguei as sacolas. Abri as portas duplas do casarão e entramos na sala. Acendi as luzes enquanto ele colocava a mala no chão.

-        Fico feliz de saber que, enfim, terei vizinhos – ele disse. A propósito, meu nome é Daniel.

-        Prazer, Daniel, sou a Tessa – estendi a mão. E esta é a Bela – apontei para minha cadelinha shih tzu. Muito obrigada pela ajuda!

-        Não por isso – ele respondeu. Está se mudando para cá?

-        Na verdade, vim passar dois meses. Depois disso, não sei o que farei...

            Ele olhou em volta.

-        Onde está seu marido? Você é casada, não é? Vi um cara de branco circulando por aqui, além do arquiteto.

-        Sim, é o Inácio. Ele não virá. Está viajando. Vai passar os próximos dois meses na Itália.

-        Espero que esteja tudo bem – ele comentou, percebendo o meu tom constrangido e desanimado.

-        Só estamos passando por uma crise – desabafei e me arrependi de imediato.

Era muito doloroso dizer aquilo em voz alta porque tornava tudo real. Percebi que ainda estava em estado de negação.

- Mas é só uma fase – completei rapidamente.

Eu precisava me agarrar a esse fiapo de esperança com unhas e dentes.

- Ele andou... – Daniel tentava formular a pergunta educadamente – aprontando?

- Não! Nada disso! – me apressei em dizer, fazendo um gesto enfático com as mãos.

Alguns homens faziam isso, e era um sinal de que algo estava errado. Mas Inácio não.

            Daniel fez um curto silêncio, então disse:

-        Bem, vou deixá-la arrumar suas coisas. Se precisar de mim, é só chamar. Passo a maior parte do tempo em casa.

            Dirigiu-se à porta e, num impulso, virou-se novamente:

-        Seja bem-vinda, Tessa! Espero que sua estadia seja muito agradável.

            Então, mergulhou na escuridão que já se instalara. O sol já sumira. Sem as luzes da cidade, tudo parecia um breu.

            Por um momento, duvidei do acerto da minha decisão de ir para lá. Será que era por causa do breve encontro com o luthier? Fiz uma anotação mental para parar de chamá-lo assim. Ele tinha nome: Daniel.

            Bem, fosse o que fosse, ali eu estaria afastada das lembranças mais cotidianas de meu casamento com Inácio. E, portanto, doeria menos.



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    Passei a noite em claro. E me arrependi de ter deixado o Rivotril para trás. Ao que tudo indicava, precisaria dele, mesmo ali.

            Às cinco da manhã, eu já estava de pé, coando um café, com Bela aninhada aos meus pés.

            Durante toda a minha vida, sempre me senti muito só, o que, às vezes, parecia incongruente com a necessidade que tinha de ficar sozinha. Talvez a explicação residisse na opção. Gosto de ficar sozinha quando eu quero. Mas não gostava de sentir solidão quando não tinha sido minha escolha.

            Como Inácio me fazia falta! A ausência dele abriu um buraco gigantesco no meu peito, e eu não sabia como lidar com aquilo. O que parecia incompreensível, já que eu tinha sido capaz de lidar com a forma mais temida de solidão, que era não ter mãe. Leila Ferreira já dissera que “não há no universo nenhum vazio maior do que um quarto vazio de mãe”. No meu caso, uma casa inteira.

            Agora, eu carregava dentro de mim um quarto vazio de marido, sem saber ao certo como transportá-lo.

            Como os remédios tinham ficado para trás e eu não pretendia sair dali nas próximas duas semanas, resolvi investir nos meus antidepressivos naturais antes que fosse tarde demais e eu não conseguisse mais me levantar da cama. Sol, livros, caminhadas, exercícios físicos e chocolate. Não necessariamente nessa ordem.

            Comecei com uma grande panela de brigadeiro, que foi o meu café da manhã. Fui para o sofá, liguei a TV e devorei o doce ainda quente. Aos poucos, meu corpo relaxou e o sono me invadiu. Acordei com o sol entrando pela janela, batendo diretamente no meu rosto. No chão, vi Bela deitada no tapete, ao lado da panela e de uma pilha de lenços de papel, meus mais novos companheiros. Concluí que deveria estar ventando lá fora pelo barulho das janelas. Era uma da tarde.

            Levantei, fui ao banheiro e, em seguida, me dirigi à cozinha. Precisava comer alguma coisa nutritiva, mas acabei optando por um balde de pipocas, acompanhado de um copo de guaraná. Eu sabia que estava entrando naquela conhecida espiral, contudo não tinha forças para lutar contra ela.

            Depois que comi o balde inteiro, tentei ler, mas não consegui me concentrar nas palavras do livro. Então, mais uma vez, adormeci. Sabia que dormir era um analgésico poderoso, mas tinha consciência também de que era um sintoma da depressão que se aproximava. Só me levantei do sofá uma única vez aquela tarde, para ir ao banheiro. No trajeto sonolento, olhei pela janela e vi uma garota alta e magra entrando na casa de Daniel.

            Acordei novamente com batidas na porta. Eu não sabia que horas eram, mas devia ser tarde, pois o sol já tinha se posto. Dei um pulo do sofá e caminhei desanimada para a porta. Abri e dei de cara com ele, o luthier.

-        Como vai, Tessa?

            Achei que era desnecessário responder, bastava olhar para mim. Assim, simplesmente sorri, melancólica.

-        Foi o que imaginei – ele prosseguiu. Não a vi o dia todo. Trouxe isto aqui para você.

            Ele ergueu uma vasilha coberta por um pano de prato bordado.

-        O que é? - perguntei, curiosa.

-        Uma canja.

-        Puxa, Daniel, muito obrigada! Adoro canja! Foi você que fez?

            Ele deu uma risada e contou que havia comprado em um bistrô, que ficava nas redondezas.

-        Você não precisava ter se preocupado comigo.

-        É um presente de boas vindas!

-        Quer entrar? - logo que convidei, me arrependi, mas já era tarde demais.

            A sala estava uma bagunça e denunciava meu estado de ânimo.

-        Passou o dia neste sofá? - ele perguntou.

-        Sim – era inútil mentir, as provas estavam ali.

-        Não tem que trabalhar, Tessa?

-        Tirei duas semanas de férias.

-        Ah... E o que pretende fazer amanhã? O mesmo que hoje?

-        Provavelmente.

-        Bem, acho que terei que tirá-la de casa, então.

            Olhei para ele sem entender.

-        Você curte uma caminhada? - ele perguntou.

            Balancei a cabeça em sinal afirmativo.

-        Tem uma cachoeira belíssima a cinco quilômetros daqui. Podemos ir até lá amanhã.

-        Você não tem que trabalhar?

            Ele riu.

-        Trabalho em casa, faço meu próprio horário.

-        Entendi. Mas acho que não, Daniel. Não serei uma boa companhia.

-        Passo aqui às sete. Trate de dormir, então.

-        É só o que tenho feito. Exceto à noite. Mas vem cá: você ouviu o que eu disse? Não vou!

-        Coma a canja e durma cedo. E confie em mim: você não vai se arrepender.

            Dito isso, ele se virou e foi embora.

            Que sujeito pretensioso, pensei.

            Por outro lado, ele parecia se preocupar comigo.

            Enquanto tomava um banho, considerei a proposta. Sair para uma caminhada seria bom para mim, sem dúvida. Eu estava com dificuldade de fazer isso sozinha, embora soubesse que era um importante antídoto contra a depressão que se instalava. Ter alguém me arrastando era providencial.

            No entanto, esse alguém era um sujeito extremamente atraente, que eu não conhecia direito. Certamente, não era um psicopata, e eu não corria risco de vida. Mas corria outro risco: o de me envolver com ele num momento em que estava vulnerável.

            Eu poderia ser hipócrita e dizer: amo o meu marido, não corro esse risco. Mas soaria falso. As coisas não são tão simples assim. Eu amava Inácio, sim, mas ele tinha ido embora, e eu estava com o coração partido. Ser consolada por um homem como Daniel era assustador. E arriscado.

            Sempre ouvi dizer que os homens são mais instintivos que as mulheres. No entanto, isso não era garantia de que eu não sucumbiria.

            A imagem de Ulisses amarrado ao mastro de seu navio me ocorreu enquanto eu tomava a melhor canja da minha vida. Se eu fosse sensata, inventaria uma desculpa quando Daniel batesse à minha porta na manhã seguinte...



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      Mas quem disse que eu era sensata?

            Passei a noite em claro, assistindo aos DVDs de Game of Thrones que Alexandre tinha emprestado para Inácio. Ele garantiu que eu não iria gostar, pois continha muita violência. Contudo, o que mais me impressionou não foi a violência explícita, mas o incesto.

            Aquele era mais um sintoma da depressão: eu estava trocando o dia pela noite. Apesar disso, às sete em ponto, quando Daniel bateu à porta, eu abri, já pronta para o passeio.

-        Animada? - ele perguntou.

-        Mais ou menos – respondi, sincera.

            Ele vestia uma bermuda cargo cáqui e uma camiseta mostarda. Reparei que tinha tatuagens estilosas nas mãos. Pretas, tribais. Usava também um anel prateado no dedo mínimo da mão esquerda. Nos dias anteriores, só o tinha visto de luvas, por causa do frio.

            Sempre tive uma queda por homens tatuados. Não aqueles cobertos por tatuagem. Mas com uma ou outra, em locais estratégicos. Nas mãos, confesso que nunca tinha visto, exceto entre as celebridades. Achei um charme! Inácio diria que essa atração era parte da minha irreverência. Da minha necessidade de transgressão. Podia ser...

            O fato é que, completando o visual, ele usava pulseiras de couro, que lhe conferiam um ar despojado.

            Em um breve instante de lucidez, me perguntei se estava entrando por um desvio. Nada daquilo deveria estar acontecendo.

            Contudo, outro pensamento tomou conta de mim. Qual era o problema? Não estava fazendo nada demais. Além disso, Inácio estava do outro lado do oceano, fazendo sabe-se lá o que com seu amigo Enrico, um mulherengo confesso.

-        Aceita um chá de hortelã? - ofereci.

            Caminhamos até a cozinha e eu o servi.

-        Me diz uma coisa, Tessa: por que as pessoas são mais felizes antes do que depois do casamento? - perguntou, olhando em volta.

            O estado geral da casa mostrava o quão desnorteada eu estava.

            Pensei antes de responder à inesperada pergunta. Como a resposta demorou, ele acrescentou, constrangido:

-        Foi mal. Não devia ter perguntado isso.

-        Não tem problema.

            Fiz uma pausa, tentando articular as palavras.

-        Acho que isso varia de pessoa para pessoa. Eu me sentia feliz com Inácio, até ele começar a me pressionar para ter filhos.

-        Ah! Então é isso!

            Fiz que sim com a cabeça.

-        Você não quer? - ele perguntou.

-        Não – confirmei.

-        Por quê?

-        Não tenho vontade, não me vejo como mãe.

-        Eu também não tenho. E, definitivamente, não me vejo como pai.

            Ok, pensei, agora eu tenho um problemão. Nunca deveria ter aberto a porta para ele.

-        Vamos? - ele perguntou, se encaminhando para a porta.

            Fiquei em dúvida se deveria acompanhá-lo ou não. Em que eu estava me metendo?

            Mas, quando dei por mim, já estávamos percorrendo uma trilha acidentada. Daniel seguia na frente, eu ia atrás. Olhando bem para ele, concluí que tinha mais de 1,90m. Parecia livre, independente. Foi então que me lembrei da garota do dia anterior, caminhando pelo jardim de sua casa, em direção à entrada.

-        Vi uma garota na sua casa ontem – eu disse.

            Ele parou e me encarou.

-        A Júlia. É minha namorada.

            Por aquela, eu não esperava.

-        E ela não se importa de você sair para uma caminhada com outra mulher?

-        Ela não sabe. De qualquer forma, não é da conta dela.

            A forma como ele se referiu à namorada me incomodou. Lembrei-me daquele professor de ginástica dizendo “não posso ser a porcaria do Romeu o tempo todo”. Ele percebeu.

-        Tô de saco cheio dela, Tessa – tentou explicar.

            Eu não disse nada.

-        Acho que me acostumei, sabe? Não ando muito empolgado.

-        Todo mundo enfrenta crises no relacionamento – eu disse.

-        Eu não chamaria de crise. Tenho a impressão de que não gosto dela o suficiente.

-        Bom, isso é um problema.

            Ele balançou a cabeça, concordando.

-        Ela quer casar. Mas, sei lá, acho que não nasci para brincar de casinha, entende?

-        Entendo. Mas aí você precisa encontrar uma mulher que também não tenha nascido para isso.

-        Da mesma forma que você precisa encontrar um homem que não queira filhos?

            Levei um susto.

-        Eu não disse isso – me apressei em responder.

-        Achei que tinha dito.

-        O que estou tentando dizer é que existem pessoas mais compatíveis. Contudo, às vezes, amamos um incompatível. Mas não parece ser o seu caso...

-        Mas é o seu.

-        Sim. É o que segurou o meu casamento até hoje.

-        O que esse cara tem de tão especial?

-        Difícil dizer. São várias coisas.

-        Você ama o sujeito e pronto.

-        É mais ou menos por aí...

-        Bem, só me resta concluir que ele é um bárbaro. Eu nunca deixaria uma mulher como você para trás.

-        Não, Daniel, ele não é um bárbaro – senti-me impelida a defender Inácio. Mas ele é bárbaro. Uma pessoa rara. Exatamente por isso não está comigo agora.

            Ele se surpreendeu com a resposta. Para falar a verdade, até eu me surpreendi.

-        Me desculpe. Eu radicalizei – ele preferiu encerrar a conversa e mudar de assunto.



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            Foi fácil chegar à cachoeira. A trilha não era difícil. Daniel me subestimou.

            Sentamos nas pedras (ou melhor, nas rochas, como me garantiu um geólogo recentemente), e ele disse:

-        Como é chegar à beira do abismo?

-        Assustador.

            Obviamente, não estávamos falando daquele declive suave em que nos encontrávamos.

-        Você tem alguma ideia do que vai acontecer?

-        Não, e isso é o mais assombroso.

            Com receio daquela conversa, resolvi mudar de assunto. Rapidamente.

-        O que você faz afinal, Daniel? Em que consiste o trabalho de um luthier?

-        Bom, Tessa, um luthier pode se dedicar tanto à construção quanto ao reparo de instrumentos de corda. No meu caso, optei apenas pela arte da construção desses instrumentos. Mantenho um ateliê em casa.

-        Puxa, que bacana!

-        É legal!

-        Você recebe seus clientes em casa?

-        Eu quase não me encontro com os clientes. O que acho ótimo. Recebo encomendas por e-mail, executo o trabalho e despacho por sedex.

-        Isso funciona?

-        Melhor do que você imagina. Quando tenho dúvidas, entro em contato por telefone ou marco uma conferência via skype.

-        Interessante.

-        Não tenho muito talento para lidar com pessoas, então esse esquema é perfeito para mim.

-        Quais são os instrumentos que você fabrica?

-        Violas, violões, violinos, violoncelos, contrabaixos, guitarras, alaúdes, bandolins...

-        A demanda é grande?

-        Se eu quisesse, Tessa, poderia trabalhar 24 horas por dia e, ainda assim, não conseguiria fazer tudo. Então, me dou o luxo de escolher o trabalho.

-        Em que você está trabalhando atualmente?

-        Em uma guitarra acústica. Quando estiver pronta, embarca para a Suécia.

-        Você é bem requisitado, hein?!

-        Sou talentoso.

            Achei aquele comentário presunçoso e me perguntei por quê. Ora, se você se considera bom em alguma coisa, por que deveria fingir falsa modéstia? Mas, sei lá, foi o jeito que ele falou...

            Talvez ele tenha percebido.

-        Mas ter talento não é suficiente. Nesse meio, precisamos ter sorte também. E eu sempre dei sorte.

            Pronto! Outro comentário soberbo. Resolvi alfinetá-lo

-        Em tudo?

-        Em tudo – ele confirmou.

            Olhei para o poço de água diante de nós e pensei: “ele tem certeza de que o reflexo do cisne na água é dele”. Eu nunca tive essa segurança com relação a mim mesma. E se, por um lado, ele me pareceu narcisista, por outro, me senti atraída. Ele tinha o que eu não possuía.

-        Você é feliz, Daniel? - resolvi perguntar, já que ele parecia tão satisfeito consigo mesmo.

            Ele deu uma risada.

-        Ok, eu mereço! Fiz a mesma pergunta a você mais cedo. A gente ainda não se conhecia direito, e achei que era a melhor forma de abordar a questão. Mas o que eu acho é: felicidade para pessoas inteligentes é a coisa mais rara que existe. Felicidade foi feita para os medíocres.

            Olhei, assustada.

-        Então...

            Ele não me deixou terminar.

-        Pode me chamar de instintivo, mas acredito que o que temos à nossa disposição são sensações passageiras e, por serem voláteis, delas devemos nos embriagar.

-        Você acha isso mesmo? - não que eu não acreditasse, mas achei surpreendente que ele abrisse o jogo tão fácil.

            Pontos para ele! Que fique claro: por ser sincero. Eu não concordava com o resto. Lembro-me de que, quando conheci Inácio, ele disse que uma das coisas que mais lhe chamaram a atenção em mim foi a minha franqueza. Segundo ele, isso era bem raro em jovens adultos – em geral, preocupados em corresponder e impressionar.

            Não éramos mais jovens, mas, ainda assim, a franqueza de Daniel me impressionou.

-        Acho, sim – ele prosseguiu, tranquilamente – Sou adepto das gratificações imediatas. Acho que esse negócio de felicidade a longo prazo é para os tolos.

-        Por isso não quer brincar de casinha com a Shirley Mallmann...

            Ele deu uma gargalhada.

-        Está começando a me entender, Tessa – disse, rindo. Não quero e não vou!

-        Nunca diga “dessa água não beberei” - respondi, achando graça.

-        Digo e repito! Isso é água de açude.




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            Quando chegamos à porta de seu chalé, Daniel me convidou para entrar e conhecer o seu ateliê. Eu estava muito curiosa para espiar não só o seu ambiente de trabalho, mas toda a sua casa.

            Assim que ele abriu a porta, fiquei espantada com a atmosfera geral. Era tudo meio...frio! Mas não deixava de ser a cara dele. Móveis rústicos, tapetes de barbante em tons crus, cadeiras de ferro fundido e esculturas diversas. Ele era um artista, o que poderia ser a explicação para aquilo. Contudo, não consegui deixar de pensar que eu não seria capaz de viver ali. Gosto de ambientes aconchegantes, com almofadas e mantas coloridas, e meu apartamento e de Inácio era assim. Em contraste, a casa de Daniel não tinha muitas cores.

            Apesar disso, ele tinha uma biblioteca impressionante. Fiquei de boca aberta quando ele afastou as portas duplas de madeira que davam para a sala e mostrou a coleção de livros.

-        Herdei do meu pai – explicou.

-        E você lê muito, Daniel? - perguntei, animada.

            Ele não respondeu de imediato. Só depois entendi por quê. Até aquele momento, eu partia do pressuposto de que ele era a franqueza em pessoa. Foi um susto descobrir que, ao contrário do que eu supunha, ele estava tentando me impressionar o tempo todo. Fazendo o que achava que eu ia aprovar. Naquele instante, ele decidia qual era a melhor resposta. Deve ter se lembrado de que, durante o passeio, falei várias vezes sobre os livros que tinha lido recentemente. Não consigo esconder de ninguém o quanto sou apaixonada por literatura.

-        Leio – respondeu, por fim.

-        Que tipo de livro você prefere? - eu ainda agia inocentemente.

Ao invés de responder, ele me entregou um volume encadernado: A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne.

-        Meu livro de cabeceira – disse.

            Achei estranho.

- Se é de cabeceira, o que está fazendo aqui?

            Ele sorriu, sem graça, e se absteve de responder.  Apesar disso, não conseguiu disfarçar o orgulho que sentia por ter me mostrado seu livro de cabeceira. Contudo, deve ter se esquecido de que o orgulho precede a queda. Eu não me deixava enganar tão facilmente, sobretudo quando o assunto era esse. Não era livro de cabeceira coisa nenhuma. Arriscaria dizer que nunca fora devidamente folheado. Seu aspecto imaculado denunciava o caráter decorativo.

            Encarei-o. Depois comecei a olhar em volta. Era uma tentativa de entender se eu estava equivocada em minhas suposições ou não.

            Ele ficou aflito.

-        Puxa vida, Tessa, você repara tudo.

           Resolvi, então, falar sobre o livro e livrá-lo da minha persecução silenciosa.

    Não, não é verdade. O que eu queria era cercá-lo de vez.

-        Nunca fui muito fã de aventuras, Daniel, mas li esse romance, porque é um clássico. Não foi das melhores leituras. Aquela expedição não me envolveu como parece ter envolvido a maioria das pessoas, como você, que o transformou em livro de cabeceira.

O sorriso dele foi ficando cada vez mais amarelo. Isso confirmou as minhas suspeitas. Que decepção! Achei que ele fosse mais maduro.

Fui tomada por um ímpeto de maldade.

-        Me diga uma coisa: o que há de tão impressionante em um homem que aposta elevada quantia de dinheiro na esperança, ou na certeza, de dar a volta ao mundo em 80 dias?

-        Bem... - ele começou.

            Àquela altura, eu já não esperava argumentos consistentes, mas seus comentários foram mais evasivos do que achei que seriam. Ou seja, nem um resumo, ou resenha, ele havia lido. Aquele era, sem dúvida, um volume decorativo, que devia fazer parte do cenário que ele montava ali. Naturalmente, o cenário variava conforme a circunstância ou a mulher envolvida. Comecei a me perguntar se tudo o que conversamos anteriormente também não passava de encenação. Será que ele imaginou que, por eu não querer filhos, ia me impressionar com um homem com forte característica transgressora? Será que sacou que Inácio era o tipo “certinho” e tentou parecer o oposto?

            O fato é que, até então, ele tinha me convencido. E tinha me impressionado, sim, não vou negar. Mas ele cometeu um erro grave: não deveria ter se metido com livros. O deslize foi fatal.

            Um parêntese: Jung tinha razão quando dizia que a vontade de revelar era maior que a de esconder???

            Bem, de uma hora para outra, Daniel não parecia mais aquele homem que modificava a estrutura molecular em torno de si, mas um garoto imaturo tentando impressionar uma moçoila. Coitado! A moçoila era Tessa, uma mulher que não perdoava esse tipo de deslize.

Senti o peso das mãos de Inácio em meus ombros me advertindo: “Não seja cruel, Tessa!”. Meu marido costumava fazer as vezes de minha consciência. Contudo, não dei ouvidos. Queria que ele soubesse que eu sabia.

-        Tem uma coisa que gosto de perguntar aos amantes dessa obra, Daniel: o que você achou do recurso usado pelo protagonista para provar que cumpriu o trajeto? Te convenceu?

            Aquilo não admitia uma resposta vaga.

            Ele me olhou em pânico e surpreso. Com certeza, nunca fora desmascarado assim, em pleno matadouro. Sim, porque, àquela altura, sua casa parecia isso: um matadouro. Senti pena das garotas que ele levava lá e que se deixavam enganar tão facilmente. Pobre Shirley Mallmann!

            - É uma pergunta capciosa? – ele tentou escapar.

            - Na verdade, não. É bem simples, contanto que você tenha lido.

            Ele fez um instante de silêncio.

-        Ok, Tessa, você venceu. Eu não li. Foi só para te impressionar.

            Fiquei surpresa, pois imaginei que ele fosse continuar enrolando. Mas deve ter percebido que não seria fácil. Eu era osso duro de roer. Tinha o “temperamento do cão”, segundo Nina.

            Imediatamente me arrependi. A reação dele me desarmou. Eu tinha sido arrogante e dona da verdade como sempre.

            Tudo bem, ele era pretensioso, mas, por outro lado, dava para notar sua insegurança, e, por incrível que pareça, isso o humanizou. Gostei dessa parte. Gostei de conhecer seu lado B.

            - Me desculpe, Daniel. De verdade. Fui arrogante.

            Ele apenas me olhou, com cara de menino desamparado.

-        Às vezes, as palavras são mais duras que meus sentimentos. Eu não quis ser rude com você.

            Mentira. Eu tinha feito de tudo para ser rude com ele. Só que me arrependi depois.

            - Você é boa para administrar a sinceridade, Tessa – ele disse, sem ressentimento.

- Inácio chamaria de outra coisa... Mas não importa. O que quero que saiba é que, embora não nos conheçamos direito ainda, gosto de você. Como você é. Portanto, não tente me impressionar, ok?

            Ele concordou com a cabeça.

-        Agora me mostra o ateliê. É nele que estou interessada – disse, mudando de assunto e conduzindo o luthier ao espaço e ao assunto que ele dominava.

  


O capítulo 10 será publicado na próxima quarta-feira, dia 20 de novembro.

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Texto: Cynthia França

Revisão: Arilma Peixoto

Colaboração: Alessandro de Faria, Anita Lima, Letícia Paratella, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira

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