Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CAPÍTULO 8


            O silêncio de Inácio nos dias seguintes foi enlouquecedor. A minha vontade era de sacudi-lo. Apesar disso, ele parecia não notar como eu me sentia. Estava distante e pensativo.

            Na quarta-feira, precisei viajar a trabalho. Normalmente, eu detestava essas viagens, sobretudo porque aqueles aviões pequenos, que eu chamava de teco-tecos (quando, na verdade, eram do modelo King Air), me causavam muito enjoo. Numa tentativa de descontrair o ambiente, um jornalista que viajava comigo brincou:

            - Será que você está grávida?

            - Há, há, há. Muito engraçado – respondi, mal-humorada.

            Nenhum comentário poderia ser mais inoportuno.

            - Nossa, você está muito Tessa! Ops, quero dizer tensa – continuou, sentindo-se o sujeito mais espirituoso do planeta. Não entendo o mal-estar, afinal o King Air é um turbo-hélice com cabine pressurizada, o que possibilita teto operacional de até 10.000 metros e o torna muito menos suscetível aos balanços que os modelos Queen Air, cuja cabine não pressurizada limita o teto operacional a 3.000 metros, deixando a aeronave mais sujeita às térmicas ascendentes. Voei muitas vezes nesses modelos e, quando o voo acontecia em um dia ensolarado, entre 11 e 13 horas, era um “Deus nos acuda”. Você não aguentaria, Tessa. O avião parecia uma folha seca ao sabor do vento. Eu era dos poucos que aguentava firme...

            Fala a verdade: eu tinha tudo para me indignar – uma viagem marcada na última hora, um avião que balançava muito, o calor infernal que estava fazendo em Montes Claros, nosso destino, e um acompanhante pra lá de chato. Apesar disso, não fiquei profundamente irritada. Perto da possibilidade de separação iminente, qualquer outra questão era supérflua.

            Cheguei em casa às oito da noite, exausta. Inácio estava no escritório. Fui até lá e dei um beijo em seu rosto.

-        Dia difícil? - ele perguntou.

-        Cansativo – respondi.

-        Preciso conversar com você – o tom me assustou.

-        Aconteceu alguma coisa?

-        Não, mas vai acontecer.

-        Preciso me sentar? - perguntei, intuindo o que viria.

-        Seria bom.

            Me joguei na poltrona diante dele.

-        Vou viajar, Tessa.

-        A trabalho?

-        Não.

-        Não estou entendendo.

-        Vou passar dois meses na Itália, com o Enrico.

            Enrico era um amigo italiano de Inácio. Eles se conheceram durante um intercâmbio que fizeram juntos no Canadá, durante a adolescência.

-        Por quê?

-        Preciso de um tempo para pensar.

-        Sobre nós?

-        Sobre nós – ele confirmou.

-        E acha que um tempo “sob o sol da Toscana” vai te dar todas as respostas?

-        Tessa, não quero brigar com você. Portanto, pare com o sarcasmo.

-        Quando você vai?

-        Daqui a dez dias.

-        Puxa, já está tudo resolvido então. Que pressa em me ver pelas costas, hein?!

            Ele não respondeu, provavelmente porque eu estava novamente sendo sarcástica.

-        Vai deixar um sonho ridículo acabar com o nosso casamento?

-        Tessa, você já parou para pensar que se ninguém quiser ter filhos, a vida vai acabar?

-        Sempre haverá quem queira, Inácio.

-        Se eu não tiver um filho, nunca terei a oportunidade de saber o que é ser pai.

-        E se tiver, perderá a sua liberdade. Perderá a vida que tem hoje.

-        Quero correr o risco. Acho que vale a pena.

            Ai, ai! O velho “vale a pena”...

-        Os filhos são o maior projeto que um casal pode conceber depois do matrimônio, Tessa. É tão difícil para você entender isso?

-        É, sim.

-        Algo me diz que existem sentimentos que só podemos cultivar se tivermos filhos. Eu sempre quis ser uma pessoa melhor, e sempre fiz tudo o que esteve ao meu alcance para isso. Intuo que ter um filho e ser responsável por sua formação vai me oferecer um campo riquíssimo. Deve ser um verdadeiro salto na evolução.

-        É um argumento egoísta, Inácio. Você só está pensando em você.

-        Não é verdade, Tessa. Este é um amor incondicional, altruísta, e você sabe disso. Um pai e uma mãe, em circunstâncias normais – ele ressaltou, antes que eu começasse a falar de minha mãe – amam seus filhos acima de tudo.

-        Isso é uma suposição sua.

            Ele ignorou o comentário.

-        Quero formar uma família com você, Tessa. Quero perpetuar a nossa herança. Quero ter certeza de que a história da minha família não termina comigo.

            Fez uma pausa, então prosseguiu:

-        Sei que, quando nos conhecemos, eu disse que não fazia questão. Acontece que as pessoas mudam, e a relação tem que acompanhar essas mudanças. Eu acreditava, até pouco tempo atrás, que o amor, e somente ele, era suficiente para manter um casamento, mas não é.

            Senti o coração apertar.

-        Ainda espero que você mude de ideia. Mas preciso estar preparado para o caso de você não mudar. É por isso que farei essa viagem.

-        Vou sentir muito a sua falta, Inácio – por fim, cedi, deixando a atitude defensiva de lado.

-        Também sentirei a sua falta, Tessa. Mais do que consigo dizer.

-        Não vá!

-        Eu preciso ir.

-        Senti tanto medo de perdê-lo quando você adoeceu... Não acredito que vou perdê-lo agora.

-        Não estou me separando de você. Ainda não. Mas, já que tocou no assunto, acho que devia pensar que, se tivéssemos um filho, ele seria uma extensão de nós. Se amanhã eu não estiver aqui, ele será a lembrança viva de mim. Não acha que é uma forma de minimizar uma perda?

-        Ok, mas você se esquece de uma questão importante. E se eu surtar, Inácio? E se eu tiver uma depressão pós-parto violenta?

-        É uma possibilidade. Mas, sabendo de antemão, podemos nos precaver. A experiência pode ser vivida de outra forma. Hoje há muito mais informação, menos preconceito e terapias mais modernas. Isso não me intimida, Tessa.

            Deu um longo suspiro e completou:

-        Já disse e repito: se tivermos um filho, apenas um, serei o pai mais colaborador deste mundo.

-        Acontece que você não pode fazer tudo.

-        É verdade, mas farei tudo o que eu puder.

-        Não posso, Inácio. Eu simplesmente não consigo.

            Ele se levantou. De costas para mim, correu a mão pelos cabelos.

            Então, disse:

-        Neste caso, só me resta fazer as malas.


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     Dez dias depois, Inácio partiu em um voo noturno. Fui com ele ao aeroporto e me despedi com lágrimas nos olhos.

            Eu estava me sentindo péssima. Dois dias antes, havia encontrado alguns folhetos dos “Médicos sem Fronteiras” no meio de alguns papéis no escritório. Neles, Inácio tinha feito anotações à mão. Imediatamente, concluí que ele estava mentindo para mim, ou, pelo menos, omitindo alguns detalhes. Talvez já tivesse decidido se separar e estivesse planejando o seu futuro longe de mim. Aquilo me deixou furiosa. Quando ele chegou em casa, fui logo cuspindo marimbondos:

-        Que cara de pau, hein, Inácio?!

-        O que foi agora, Tessa? - perguntou, impaciente.

-        Descobri seu negocinho clandestino.

    Ele me olhou, sem entender.

-        Médecins sans Frontières – falei, irônica.

-        Não estou entendendo, Tessa.

-        Por que não é sincero comigo, Inácio? Diz logo que já decidiu se separar e que vai se juntar a essa ONG. A sua cara, aliás.

    Faltou pouco para eu ironizá-lo ainda mais, recitando o trecho do poema de John Donne, que ficou conhecido por ter dado nome ao famoso livro de Hemingway:


“A morte de cada homem me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”


    Sempre achei que essas palavras tinham sido escritas para Inácio. Ele tinha um altruísmo que eu não possuía, e, vira e mexe, eu jogava isso na cara dele, como se fosse uma doença contagiosa.

            Alheio aos meus pensamentos beligerantes, meu marido respirava fundo.

-        Tessa, eu vou dizer pela última vez: estou indo para a Itália, passar um tempo na casa do Enrico.

-        Então, o que significa isso? - atirei os papéis nele.

-        São folders.

            Continuei ereta, com os braços cruzados e o queixo empinado.

-        Admiro o trabalho humanitário que esses profissionais realizam – ele continuou. E queria encontrar uma forma de contribuir. Financeiramente. O que pensou?

            Meu queixo caiu.

            Era óbvio, mas o pânico de perdê-lo estava me cegando. Me enlouquecendo.

            Fiquei envergonhada.

            Uma acusação injusta àquela altura do campeonato era tudo de que não precisávamos.

-        Me desculpe – eu disse, com os olhos fixos no chão.

-        Por que você está fazendo isso? Está tentando tornar impossível o meu amor por você? – perguntou, exasperado.

    Continuei em silêncio. Não tinha nada a dizer em minha defesa.

            Então, ele fez algo inesperado: me puxou para um beijo forte, possessivo. Na sequência, fomos para o quarto, onde fizemos amor apaixonadamente. Já tinha ouvido falar que sexo de reconciliação é memorável, mas preciso dizer que o de despedida também é. Intenso e doloroso, na mesma medida.

-        Você não está tornando a minha vida mais fácil nesse momento, Inácio – eu disse, quando tudo terminou.

-        Eu sei. Nem a minha.

            Mas nem por isso ele desistiu da viagem.

            Pouco antes de ele fechar a última mala, entrei no quarto e lhe entreguei um quadrinho que encontrei em uma loja de decoração, dias atrás, e que reservei para aquele momento. Era um enfeite delicado, que podia ser colocado em uma mesinha de cabeceira, por exemplo. Nele estava escrito: “Me ame quando eu menos merecer, pois é quando eu mais preciso”. Achei que resumia o que eu queria lhe dizer naquele momento. Além disso, gostaria que ele se lembrasse disso durante a viagem.

            Ele agradeceu o presente e o colocou na mochila, que seria sua bagagem de mão.

            Ficamos de mãos dadas até a hora do embarque. Então, ele me deu um longo beijo de despedida e caminhou para a sala de embarque sem olhar para trás.

            Senti um aperto tão forte no peito, que precisei me sentar na cadeira mais próxima.

            No carro, a caminho do aeroporto, eu tinha dito:

            - Não vá, Inácio!

            Ele acariciou o meu rosto e respondeu:

            - Eu preciso ir, Tessa. Há coisas que preciso entender.

            Levantei da cadeira, ainda sem fôlego, torcendo muito para que aquilo não fosse o início de um ataque de ansiedade, e caminhei freneticamente em direção ao estacionamento. Precisava sair dali. Eu já sabia que não seria capaz de assistir à decolagem do terraço, mas não imaginei que o embarque dele fosse me torturar daquela forma. Tinha me preparado para aquilo a semana toda. Mesmo assim, parecia insuportável.

            Com lágrimas ardendo em meus olhos, desci as escadas rolantes. Assim que atravessei o saguão, senti um toque leve em meu ombro.

            Inácio, pensei. Ele desistiu de embarcar!

            Virei-me rapidamente, quase sorrindo, e dei de cara com Alicinha. Ah, não! Era só o que me faltava...

            Amiga da família de Inácio há anos, Alicinha era uma socialite insuportável. Sabe aquele tipo de pessoa que vive em função das expectativas sociais? Pois é. Eu era obrigada a comparecer às festas na casa dela e aos eventos beneficentes que ela organizava, e sempre odiei tudo. Quer fazer caridade? Ótimo! Mas para que tanto estardalhaço? Sempre tive a impressão de que ela estava mais preocupada com a autopromoção.

            Inácio não gostava da forma como eu me referia a ela, o que, no início, pareceu intrigante. Alicinha era o tipo de mulher que ele consideraria fútil e vazia. Mas, então, percebi que, por ela ter sido uma grande amiga de sua mãe, o vínculo afetivo falava mais alto.

            - Mrs. Dalloway – eu a cumprimentei, tentando ocultar as lágrimas.

            Eu só a chamava assim, em referência à personagem frívola de Virginia Woolf. Inácio não gostava nem um pouco disso e já havia me repreendido, mas eu lhe garantia que não havia a mínima chance de ela descobrir a verdade. Eu podia apostar que ela não lia nada além das colunas sociais.

            - Tessa – ela disse, formalmente. Bela, como sempre.

            E beijou o ar em volta de mim, como sempre fazia.

            Ela era extremamente educada e gentil. Uma autêntica lady.

            - Vai viajar, Alicinha?

            - Não, querida, vim aqui por sua causa.

            - Minha? – perguntei, surpresa.

            - Sei que Inácio viajou. Olívia me contou – seu olhar denunciou o quanto ela sabia. Fiquei preocupada com você.

            Eu detestava a mania de Inácio de compartilhar detalhes da nossa vida íntima com sua tia. E fiquei furiosa por Olívia ter sido tão indiscreta. Foi contar justo para a Alicinha? No dia seguinte, provavelmente, a notícia estaria em todas as colunas de fofoca.

            - Como você está? – ela perguntou.

            - Estou bem – respondi, sem convicção.

            - Por que não saímos daqui e tomamos um espumante?

            - Eu agradeço, Alicinha, mas estou dirigindo e...

            - Você pode deixar o carro em sua casa. De lá, vamos com o meu motorista.

            - Não sei, Alicinha...

            - Tessa, deixa eu te ajudar. Me dá uma chance. Vamos conversar.

            O empenho dela me convenceu.

            E tive que reconhecer que ela era esperta. Me pegar no aeroporto foi um golpe de mestre. Se ela me deixasse chegar em casa, provavelmente não me arrancaria de debaixo dos lençóis tão cedo. Eu já previa a terrível espiral dos dias seguintes...

            Duas horas depois, entrávamos em um dos restaurantes mais badalados da cidade. O tipo de local em que não se aparece sem uma reserva feita com, no mínimo, um mês de antecedência. Mas, obviamente, isso não era problema para Alicinha, que trocava amabilidades com a hostess, enquanto éramos encaminhadas a uma mesa bem localizada.

            Assim que nos sentamos, ela foi direto ao ponto:

            - Um bebê seria o seu salvo-conduto, não é?

            Fiquei impressionada com a sua presença de espírito.

            Olhei para ela, perplexa e triste.

            - Seria. E agora que ele se foi, eu não consigo deixar de pensar que nunca serei capaz de me perdoar se nos separarmos.  A culpa é toda minha. Eu estraguei tudo.

            - Tessa, minha querida, eu poderia ficar na superfície da questão e dizer simplesmente: tenha um filho! Mas nós sabemos que não é tão simples assim. Como dizem por aí, o buraco é mais  embaixo.

            Fiquei surpresa por ela ter usado uma expressão vulgar. Nunca vi nada do gênero sair daquela boca refinada.

            Alheia ao meu espanto, ela prosseguiu:

            - Quando você diz: “nunca serei capaz de me perdoar, a culpa é toda minha, eu estraguei tudo”, tenho a impressão de que o discurso está correto, mas a cena está errada. Não estamos falando do aeroporto, estamos?

            Aquilo deu um nó na minha cabeça.

            - Você carrega toda essa culpa, sim, mas é do abandono de sua mãe a que você está se referindo – ela explicou.

            Olhei para Alicinha, aterrorizada. Quando foi que ela virou aquele monstro? Quis sair de lá correndo, mas minhas pernas ora pesavam toneladas, ora pareciam de borracha.

            - Parece loucura, não parece? Mas, por alguma razão, você se culpa pela partida de sua mãe. Acha que fez alguma coisa errada, que deu causa ao abandono de alguma forma. Enquanto você não se livrar desse peso morto, não se permitirá viver.

            - Como...? – tentei argumentar, mas ela me interrompeu.

            - Sei disso porque vivi algo muito parecido. Você não sabe, mas, quando eu tinha 16 anos, meu pai se matou. Estávamos todos lá na hora do almoço. Durante muito tempo, eu me torturei imaginando o que eu tinha feito de errado para deixar meu pai tão triste. Demorei muito para perceber que não era culpa minha, nem de ninguém. Recentemente, escrevi um texto sobre isso. Gostaria de te mostrar.

            Ela sacou um papel da bolsa.

            Desdobrei e li.


O almoço interrompido


Era domingo. Hora do almoço.

Após ter saboreado e agradecido por mais uma comida deliciosa preparada com carinho, meu pai se levantou para sempre.

Era o último almoço em família.

Durante anos, continuamos a postos na mesma mesa aos domingos.

O tempo passou. E, com ele, as datas importantes. Nada deixou de ser lembrado ou comemorado, mesmo sem vontade.

Naquela época, acreditei que a salvaguarda estava em fugir de tudo: da dor, do sofrimento, de mim mesma.

Assumi um disfarce convincente. E sobrevivi, em meio aos choros contidos (e escondidos) e às mil interrogações na mente.

Na superfície, tudo parecia imaculado. Mas, por dentro, o silêncio era doído, a dúvida era cruel, o pranto, desesperado. A vida parecia sem sentido. Sem explicação.

A casca despreocupada ocultava a luta interna: cada poro do meu corpo parecia ter vida própria e lutava com a culpa, que minava minhas exíguas esperanças, dia após dia.

Até que eu me cansei daquilo. E decidi que era hora de mudar. De ser mais forte (não sei se a palavra certa é forte, ou experiente).

Continuo vendo a mesma cena todos os dias, repetidas vezes: meu pai se levantando para sempre, interrompendo o almoço de domingo.

Tudo isso vem carregado de emoção. Recordo o que vivi em família, o bom e o ruim, as dores, as diferenças. O que poderia ter sido melhor, os arrependimentos, o que deixei de fazer ou de falar.

Sempre fico muito mexida. Mas compreendi que isso é natural quando uma vida é interrompida abruptamente.

E que o mais importante é sentir que não se está só. Não existem culpados, mas sobreviventes.


            - Você não está só, Tessa. E não tem culpa de nada – ela enfatizou.

            Meu Deus, eu nunca deveria tê-la chamado de Mrs. Dalloway. Agora eu sabia que ela compreendia o meu sarcasmo. E, o pior, relevou isso e foi capaz de me estender a mão no momento em que eu mais precisava. Se ela estivesse usando luvas de pelica, eu não teria estranhado. Embora eu merecesse um soco inglês. Julguei-a mal o tempo todo.

            - As pessoas brincam dizendo que estão correndo atrás do prejuízo, mas sempre achei que devíamos correr dele. A mesma coisa se aplica à tristeza. Eu estava obcecada pela tristeza da qual tentava fugir. Mas, na verdade, estava correndo atrás dela. Ouça o que digo, Tessa: não abrace a infelicidade como se fosse a única coisa que te cabe.

            Fez um pequeno silêncio e completou:

            - A culpa não vai embora sozinha. Você tem que fazer com que isso aconteça. E, sendo bem franca, preciso te dizer que ela diminui, mas não desaparece por completo. Você terá que aprender a conviver com as sobras.

Então, em mais um golpe de mestre, levantou a taça, triunfante, e finalizou:

- Como diria Guimarães Rosa, “só se sai do sertão é tomando conta dele adentro”.


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Voltei para casa perplexa com a transformação de Alicinha. Aos meus olhos, ela era outra pessoa. Depois de citar Guimarães Rosa, não tive mais nenhuma dúvida de que ela conhecia o meu segredinho obscuro.

            Abri a porta do apartamento e não acendi as luzes. O aperto no peito voltou. Feroz.

            Há dez anos vivíamos juntos ali.

            De imediato, soube que não poderia voltar para o nosso quarto. Eu não suportaria ficar sozinha lá, onde dormíamos, conversávamos, ríamos, nos amávamos, planejávamos o futuro.

            Sem me preocupar em escovar os dentes ou trocar as roupas, peguei Bela no colo, me joguei no sofá e nos cobri com a manta que estava ali, repousando a cabeça nas almofadas. Passaria a noite lá. No dia seguinte, decidiria o que fazer.

            Foi a pior noite da minha vida.

            Fugir do quarto não atenuou a dor. A casa inteira tinha o cheiro dele. Passei a noite chorando convulsivamente. Tive receio até de que algum vizinho chamasse uma ambulância. Bela ficou indócil, lambia o meu rosto o tempo inteiro, tentando aplacar o meu sofrimento.

            No dia seguinte, mal consegui sair do sofá, tantas eram as dores físicas que sentia.

            Nina me ligou logo de manhã e, assim que escutou a minha voz, foi para lá.

            - Você está péssima, Tessa.

            - O que você esperava?

            Ela não respondeu.

            - Vou preparar um café forte para você.

            - Não vou conseguir ficar aqui, Nina. Tudo nesse apartamento me lembra Inácio. Vou acabar adoecendo.

            - Então, vá lá para casa.

            - Não, eu preciso ficar sozinha.

            - Vai acabar ficando deprimida assim.

            - Acho que isso será inevitável.

            - O que vai fazer?

            - Acho que vou para a nossa casa de campo. Ela ficou pronta, mas Inácio nem teve tempo de ir lá.

            - Vai passar um tempo lá?

            - Acho que sim.

            - Será que isso vai te fazer bem?

            - Não dá para ficar pior que isso, Nina. Então, vou tentar.




            O capítulo 9 será publicado na próxima quarta-feira, dia 13 de novembro.

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            Texto: Cynthia França

            Revisão: Arilma Peixoto

            Colaboração: Adriano Machado, Anita Lima, Elissama Freitas, Juliana Domingues, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira.

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