Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

CAPÍTULO 16



            Dormi um sono conturbado. Não sabia se tinha sido o morcego ou os pensamentos dos últimos dias, mas acabei acordando de madrugada, pronta para mais uma rodada de reflexões.

            Quando o dia amanheceu, Nina me telefonou querendo marcar um almoço. Como nossa conversa tinha sido interrompida por Maurício, não estranhei.

            Naquela manhã eu tinha horário marcado no cabeleireiro para retocar as luzes. Sabia disso porque a recepcionista do salão havia me ligado na véspera. Sempre que eu descoloria as mechas, deixava um horário agendado para dali a três meses, mas sequer estava me lembrando disso. Meus cabelos eram a minha última preocupação naquele momento. Mesmo assim, decidi ir, a fim de conferir alguma normalidade à minha vida.

            Notei uma movimentação diferente no salão assim que cheguei lá. Mas como estava meio aérea, achei que fosse impressão minha. Peguei uma daquelas revistas sem conteúdo e comecei a folhear enquanto esperava a minha vez.

            Não demorou muito e Sônia me chamou.

            - Tessa, minha querida! Sente-se aqui – e foi logo passando a mão nos meus cabelos. Deus conserve!

            Ri porque ela sempre dizia isso. Meus cabelos eram volumosos, lisos na raiz e ondulados nas pontas. O tipo de cabelo fabricado para comerciais de TV. A diferença é que era natural e não me custava muito esforço mantê-lo bonito e viçoso. O comprimento, naquele momento, era o que eu chamaria de ideal. Por isso, não tinha a intenção de cortá-lo e estava pronta para indeferir qualquer sugestão de Sônia nesse sentido. Se bem que, conhecendo-me bem, duvidei de que ela ousasse. Ela sabia o quanto eu gostava do visual “cabelão”, principalmente porque não é qualquer mulher que consegue manter a cabeleira Gisele Bündchen no dia a dia.

            - Vou preparar a tinta, querida – ela anunciou.

            - O que está rolando, Sônia? – resolvi perguntar, notando o buchicho entre cabeleireiras e clientes.

            - Ah, é que o Nelsinho está promovendo uma ação em parceria com o Hospital Mário Penna. Uma iniciativa do bem, segundo ele.

            Nelsinho era o dono do salão.

            - Uma iniciativa do bem? – perguntei intrigada.

            - Isso aí. As clientes que cortarem acima de 15 centímetros das madeixas terão 50% de desconto no valor do corte e terão o rabo de cavalo doado ao hospital para a confecção de perucas destinadas às pacientes com câncer.

            - Sério?

            - Sério.

            Então, ela abaixou o tom de voz:

            - Uma grande bobagem. Que mulher em sã consciência vai cortar mais de 15 centímetros do cabelo para ganhar um desconto desses? Não vai colar. Pergunta se alguém já cortou. É claro que não!

            Olhei em volta e, de fato, ninguém estava cortando.

            A iniciativa era tímida, mas era bacana. Lembrei-me de Inácio se submetendo às sessões de quimioterapia e perdendo os fios de cabelo. Se para um homem era uma experiência difícil, para uma mulher deveria ser muito mais.

            Mas nem todo mundo pensava assim. Uma cliente sentada ao meu lado disse:

            - Sinceramente, acho perda de tempo e até futilidade pensar no cabelo quando se está com uma doença tão grave quanto o câncer.

            Levei um susto com aquelas palavras. Perda de tempo? Futilidade? Será que eu tinha algum problema? Porque aquilo fazia muito sentido para mim. A preocupação com os fios sinaliza que a paciente está pensando nela, que não desistiu de si mesma, o que é importantíssimo. Além disso, a presença do cabelo é essencial para a sua autoestima, para o seu reconhecimento como mulher e para a sua adaptação à nova identidade visual provocada pela quimioterapia. Sentir-se bonita e confiante é parte fundamental do tratamento. Pela experiência com Inácio, eu sabia que a perda dos cabelos era uma fase em que a pessoa era forçada a sair do estado de negação e admitir, para si mesma e para os outros, que estava doente. Se uma prótese capilar podia ajudar, não havia nenhuma razão para eu poupar os meus fios.

            Avistei Sônia retornando com a tintura e anunciei:

            - Pode trazer a tesoura. Vou doar o meu cabelo.

            Ela ficou pasma.

            - Tá louca, boneca? Logo o seu, o cabelo mais bonito das redondezas?

            - Bem, se é o mais bonito, melhor. Teremos uma peruca de primeira!

            As clientes começaram a se juntar em torno de nós e a lamentar profundamente a minha decisão. Até um “Deus não dá asa a cobra” eu ouvi. O que achei muito interessante, já que as pessoas costumam bradar o quanto são solidárias.

            Quase aos prantos, Sônia pegou a tesoura, prendeu os fios em um rabo de cavalo bem justo e cortou rente ao elástico, da maneira correta. Fez tudo rapidamente, com receio de perder a coragem.

            Foi uma transformação radical. Quando ela soltou os fios e olhei para o espelho, quase não me reconheci. Nunca usei cabelos curtos antes, então não podia prever como ficaria. Mas, independentemente do resultado, me senti bem. Se servisse para transformar a vida de quem os recebesse, já tinha valido a pena.

            Sônia tentou ajustar o novo comprimento a um corte despojado e moderno. Ficou até interessante. Não vou dizer que amei, mas também não ficou um desastre. Ela caprichou nas luzes, e saí de lá mais leve, talvez pela economia de cabelo.

            Nina não me reconheceu quando entrei no restaurante. Só quando me aproximei, ela percebeu que era eu. Naturalmente, levou um susto.

            - Tessa! O que você fez? – perguntou, chocada.

            - Doei meus fios para um banco de perucas – disse, e expliquei os detalhes.

            Quando terminei a explicação, ela soltou um suspiro e falou:

            - Você é surpreendente, Tessa. Não faz o que a gente espera que faça, mas faz o que ninguém está esperando. E o que muitos não estão dispostos a fazer.

            Fez uma pausa e continuou:

            - Olha só: eu até topo contribuir financeiramente com algum fundo destinado a pessoas com câncer, mas não corto meu cabelo de jeito nenhum. É horrível admitir isso, mas é verdade.

            Fiquei olhando para ela em silêncio. Por fim, disse:

            - Tudo bem.

            - Não, não está tudo bem. Eu me sinto egoísta por isso.

            - Cada um faz o que pode.

            - Sabe o que isso me fez lembrar? Do Theo.

            Franzi o cenho.

            - Já se esqueceu do Theo, nosso amigo do colegial?

            Aí me lembrei.

            Theo era colega de sala da Nina. Íamos juntos para a escola porque morávamos na mesma rua. Certo dia, em uma festa, um garoto metido a besta, filho do prefeito de uma dessas cidadezinhas do interior, começou a puxar briga com ele. A certa altura, Theo reagiu e atirou o copo que segurava no agressor, ferindo-lhe o rosto. Foi uma confusão!

            Saímos de lá às pressas, mas, depois daquele dia, Theo não teve mais sossego. O garoto, patrocinado pelo pai, contratou uma gangue para perseguir nosso amigo. Resultado: ninguém mais queria andar com ele, com receio de ser espancado. Todo mundo se afastou de Theo, sem sutilezas. Sua mãe, apavorada, contratou seguranças para acompanhá-lo à escola, e ele parou de sair sozinho. Nessa época, fui a única pessoa que manteve a amizade com ele. Na hora do recreio, circulávamos juntos pelo pátio, sob os olhares apreensivos dos colegas. Na hora da saída, eu o acompanhava até o veículo que o levaria para casa, ao lado dos seguranças. Nem mesmo Nina ousava chegar perto dele. Tivemos discussões acaloradas na época.

            - Fica longe dele, Tessa. Vai sobrar para você.

            - Você quer que eu abandone o Theo? Ele ficará sem nenhum amigo. E se fosse com você, Nina?

            - Eu nunca atiraria um copo em uma pessoa.

            - Foi um rompante. Ele já se arrependeu. Aquele garoto não parava de incomodar.

            Não desisti de Theo, mas ele acabou desistindo daquela vida. Assim que o ano terminou, ele foi embora do Brasil. Arranjou um trampo nos Estados Unidos, caiu fora e nunca mais voltou. Soube que se casou com uma americana e acabou conseguindo o famigerado green card.

            - O que o Theo tem a ver com isso?

            - Naquela época, você também fez o que ninguém quis fazer.

            Ela fez uma pausa.

            - Sou sua irmã, te conheço bem e, ainda assim, me surpreendo com suas atitudes. Na maior parte do tempo, você se comporta como se não estivesse nem aí para nada nem para ninguém. É fácil te rotular de egoísta, sabia? Mas aí você faz coisas que jogam tudo isso por terra. Aparentemente, são atitudes que não combinam, mas que deixam bem claros seus conflitos.

            - Aonde você quer chegar, Nina?

            - A lugar nenhum. Já disse o que queria.

            Ótimo! Eu não queria discutir os contrapontos ao meu egoísmo retumbante naquele momento. Nada disso era claro para mim ainda. Uma coisa de cada vez era o meu novo lema.

            - Afinal, por que quis almoçar comigo hoje?

            - Credo, Tessa, eu preciso de um motivo?

            - Não, mas eu te conheço e sei que há um motivo.

            - Você está certa. Fiquei muito chateada com a atitude do Maurício ontem.

            - Imaginei.

            - Você foi embora, e a gente nem conversou...

            - Como você está se sentindo?

            - Mal. Sempre fico mal quando ele me trata assim.

            - E por que você deixa?

            - Ah, Tessa, não é tão simples reverter uma situação que se arrasta há anos...

            Ela fez uma pausa.

            - Nunca disse isso a ninguém, portanto espero que fique só entre nós.

            Lancei um olhar de reprovação a ela. Era óbvio que ficaria só entre nós. Eu nunca contava nada do que ela me dizia em confidência a ninguém. Caso contrário, que tipo de irmã seria eu?

            - Às vezes, fantasio sobre o fim do meu casamento.

            Aquilo foi surpreendente. Nunca imaginei!

            Ela prosseguiu:

            - Não quero que isso aconteça de verdade, acredite! Mas, em momentos cruciais, me ajuda a superar uma dificuldade, a elaborar melhor um conflito, sei lá, me dá uma liberdade que de fato não tenho. Sempre volto à relação mais disposta, se é que me entende.

            - É claro que eu entendo, Nina. Toda mulher faz isso.

            Ela me olhou confusa.

            - Como assim? Faz o quê?

            - Fantasia a respeito de coisas que não pode ter de verdade. E isso acaba gerando satisfação.

            - É, mas recentemente ando preocupada. Preocupada comigo em relação ao Maurício. Será que as coisas vão melhorar? Acho que a crise no seu casamento foi uma espécie de gatilho. Mas, por favor, não estou te culpando.

            - Sei que não está – tentei acalmá-la.

            Mas quem começava a ficar preocupada era eu. Nina nunca tinha falado assim antes.

            - Bem, eu só queria te contar, Tessa. Pôr para fora. Você deve estar satisfeita, não é? Nunca gostou dele...

            - Pare de dizer tolices, Nina. Não tenho nada contra ele.

            Diplomacia! Na verdade, nunca fui com a cara dele mesmo. E você já sabe disso. Maurício era corretor de valores, o que o tornava alvo fácil para acusações de ser um sujeito chato. Mas ele era mesmo. Tinha boa aparência, ganhava rios de dinheiro e era grosseiro com as pessoas, sobretudo com a minha irmã. Até Inácio, que estava sempre tentando achar o lado bom das pessoas, concordava que ele era osso duro de roer.

            Resolvi aprofundar o assunto quando percebi que Nina havia estancado naquele ponto.

            - Me diga uma coisa, Nina: sua preocupação tem a ver com o fato de a fantasia estar tentando se concretizar?

            Ela fez uma expressão de horror.

            - Não, Tessa, imagina! Na ficção, é tudo mais fácil, mas se separar de alguém na vida real não é tão simples. Há uma quantidade significativa de coisas que precisam ser levadas em conta. Enfim, é complicado. E, com filhos, mais ainda. A gente acaba se separando de muito mais do que apenas uma pessoa. Dá adeus a uma vida inteira. E não se faz isso por capricho ou em um momento em que as coisas não vão bem.

            Tive que concordar com ela. Nina tinha razão. Como ela era lúcida!

            Certa vez, uma amiga me disse que o fim de um casamento é a coisa mais triste do mundo. É exagero, claro. Não é a coisa MAIS triste. Mas é triste, sim. Ninguém se casa projetando um divórcio. A gente se casa acreditando que vai dar tudo certo, que vai funcionar. E, quando não funcional, é arrasador.

            - Além do mais – ela completou – há um fato curioso: não quero outro homem. Ainda que venha a me separar de Maurício um dia, não consigo me ver com outra pessoa.

            - Não consegue agora... – tentei dizer, achando aquilo muito radical.

            - Não, Tessa, é sério. Acho que é uma das únicas certezas que tenho na vida. Se algum dia eu não quiser mais ficar com ele, acho que ficarei sozinha.

            - Você é que é surpreendente, Nina! – falei, sem ter mais o que dizer.

 

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            Voltei para casa pensando na conversa com Nina. Minha nova versão em tons sépia me permitia refletir sobre as coisas sem reagir tanto. Nos velhos tempos, eu diria que Nina estava acomodada, que se contentava em permanecer infeliz dentro do casulo seguro do casamento. Agora eu não tinha mais tanta certeza. E não me sentia a dona da verdade. Aliás, na tentativa de ser a dona da verdade, acabei me transformando em uma voz solitária no deserto, brandindo para mim mesma, num monólogo enfadonho.

            Quem era eu para julgar Nina? Eu estava sozinha. E sentia muita falta do tempo em que acordava aquecida, segura e amada. Embora eu e Inácio não tivéssemos rompido definitivamente, eu não podia afirmar que estávamos apenas dando um tempo. Queria que isso fosse verdade, mas podia não ser. Talvez o fim do nosso casamento fosse inevitável, o que me deixava numa situação pior que a de Nina.

            Durante o almoço, ela dissera:

            - Tudo me parece meio prematuro, Tessa. Não acho que Inácio esteja pretendendo se separar de você.

            No fundo, Nina tentava convencer a si mesma. Sem protestar, eu apenas disse:

            - Inácio não é um homem de decisões prematuras, Nina.

            E isso era o que mais me preocupava.

            Fui saudada por Bela assim que atravessei os portões da Vila Mariana.

Sentia-me triste pela falta que Inácio me fazia e pela perspectiva de perdê-lo para sempre, mas ao mesmo tempo estava estranhamente calma.

            Como eu não tinha a mínima ideia do que fazer com o tempo livre, troquei de roupa e caminhei até o jardim em busca de consolo. Mexi e remexi a terra durante umas três horas, parando apenas para beber água e ir ao banheiro. Estava quase encerrando as atividades, quando subitamente Bela eriçou os pelos das costas, levantou as orelhas, correu em direção ao portão da casa e uivou.

            Ela nunca uivava, a não ser que...

    Não podia ser!!!

   Corri em disparada até lá e, assim que cruzei o umbral da porta, confirmei minhas suspeitas: Inácio estava ali parado, olhando para mim, com seus olhos penetrantes.
 
 
 
Texto: Cynthia França
 
Revisão: Arilma Peixoto
 
Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira
 


      

Um comentário:

  1. Gosto muito da forma que vc "enxerga" e descreve os conflitos e os diálogos internos! muito bom, Cynthia!

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