Dormi
um sono conturbado. Não sabia se tinha sido o morcego ou os pensamentos dos
últimos dias, mas acabei acordando de madrugada, pronta para mais uma rodada de
reflexões.
Quando
o dia amanheceu, Nina me telefonou querendo marcar um almoço. Como nossa
conversa tinha sido interrompida por Maurício, não estranhei.
Naquela
manhã eu tinha horário marcado no cabeleireiro para retocar as luzes. Sabia
disso porque a recepcionista do salão havia me ligado na véspera. Sempre que eu
descoloria as mechas, deixava um horário agendado para dali a três meses, mas
sequer estava me lembrando disso. Meus cabelos eram a minha última preocupação
naquele momento. Mesmo assim, decidi ir, a fim de conferir alguma normalidade à
minha vida.
Notei
uma movimentação diferente no salão assim que cheguei lá. Mas como estava meio
aérea, achei que fosse impressão minha. Peguei uma daquelas revistas sem
conteúdo e comecei a folhear enquanto esperava a minha vez.
Não
demorou muito e Sônia me chamou.
-
Tessa, minha querida! Sente-se aqui – e foi logo passando a mão nos meus
cabelos. Deus conserve!
Ri
porque ela sempre dizia isso. Meus cabelos eram volumosos, lisos na raiz e
ondulados nas pontas. O tipo de cabelo fabricado para comerciais de TV. A
diferença é que era natural e não me custava muito esforço mantê-lo bonito e
viçoso. O comprimento, naquele momento, era o que eu chamaria de ideal. Por
isso, não tinha a intenção de cortá-lo e estava pronta para indeferir qualquer
sugestão de Sônia nesse sentido. Se bem que, conhecendo-me bem, duvidei de que
ela ousasse. Ela sabia o quanto eu gostava do visual “cabelão”, principalmente
porque não é qualquer mulher que consegue manter a cabeleira Gisele Bündchen no
dia a dia.
-
Vou preparar a tinta, querida – ela anunciou.
-
O que está rolando, Sônia? – resolvi perguntar, notando o buchicho entre
cabeleireiras e clientes.
-
Ah, é que o Nelsinho está promovendo uma ação em parceria com o Hospital Mário
Penna. Uma iniciativa do bem, segundo ele.
Nelsinho
era o dono do salão.
-
Uma iniciativa do bem? – perguntei intrigada.
-
Isso aí. As clientes que cortarem acima de 15 centímetros das madeixas terão
50% de desconto no valor do corte e terão o rabo de cavalo doado ao hospital
para a confecção de perucas destinadas às pacientes com câncer.
-
Sério?
-
Sério.
Então,
ela abaixou o tom de voz:
-
Uma grande bobagem. Que mulher em sã consciência vai cortar mais de 15
centímetros do cabelo para ganhar um desconto desses? Não vai colar. Pergunta
se alguém já cortou. É claro que não!
Olhei
em volta e, de fato, ninguém estava cortando.
A
iniciativa era tímida, mas era bacana. Lembrei-me de Inácio se submetendo às
sessões de quimioterapia e perdendo os fios de cabelo. Se para um homem era uma
experiência difícil, para uma mulher deveria ser muito mais.
Mas
nem todo mundo pensava assim. Uma cliente sentada ao meu lado disse:
-
Sinceramente, acho perda de tempo e até futilidade pensar no cabelo quando se
está com uma doença tão grave quanto o câncer.
Levei
um susto com aquelas palavras. Perda de tempo? Futilidade? Será que eu tinha
algum problema? Porque aquilo fazia muito sentido para mim. A preocupação com
os fios sinaliza que a paciente está pensando nela, que não desistiu de si
mesma, o que é importantíssimo. Além disso, a presença do cabelo é essencial
para a sua autoestima, para o seu reconhecimento como mulher e para a sua
adaptação à nova identidade visual provocada pela quimioterapia. Sentir-se
bonita e confiante é parte fundamental do tratamento. Pela experiência com Inácio,
eu sabia que a perda dos cabelos era uma fase em que a pessoa era forçada a
sair do estado de negação e admitir, para si mesma e para os outros, que estava
doente. Se uma prótese capilar podia ajudar, não havia nenhuma razão para eu
poupar os meus fios.
Avistei
Sônia retornando com a tintura e anunciei:
-
Pode trazer a tesoura. Vou doar o meu cabelo.
Ela
ficou pasma.
-
Tá louca, boneca? Logo o seu, o cabelo mais bonito das redondezas?
-
Bem, se é o mais bonito, melhor. Teremos uma peruca de primeira!
As
clientes começaram a se juntar em torno de nós e a lamentar profundamente a
minha decisão. Até um “Deus não dá asa a cobra” eu ouvi. O que achei muito
interessante, já que as pessoas costumam bradar o quanto são solidárias.
Quase
aos prantos, Sônia pegou a tesoura, prendeu os fios em um rabo de cavalo bem
justo e cortou rente ao elástico, da maneira correta. Fez tudo rapidamente, com
receio de perder a coragem.
Foi
uma transformação radical. Quando ela soltou os fios e olhei para o espelho,
quase não me reconheci. Nunca usei cabelos curtos antes, então não podia prever
como ficaria. Mas, independentemente do resultado, me senti bem. Se servisse
para transformar a vida de quem os recebesse, já tinha valido a pena.
Sônia
tentou ajustar o novo comprimento a um corte despojado e moderno. Ficou até
interessante. Não vou dizer que amei, mas também não ficou um desastre. Ela
caprichou nas luzes, e saí de lá mais leve, talvez pela economia de cabelo.
Nina
não me reconheceu quando entrei no restaurante. Só quando me aproximei, ela
percebeu que era eu. Naturalmente, levou um susto.
-
Tessa! O que você fez? – perguntou, chocada.
-
Doei meus fios para um banco de perucas – disse, e expliquei os detalhes.
Quando
terminei a explicação, ela soltou um suspiro e falou:
-
Você é surpreendente, Tessa. Não faz o que a gente espera que faça, mas faz o
que ninguém está esperando. E o que muitos não estão dispostos a fazer.
Fez
uma pausa e continuou:
-
Olha só: eu até topo contribuir financeiramente com algum fundo destinado a
pessoas com câncer, mas não corto meu cabelo de jeito nenhum. É horrível
admitir isso, mas é verdade.
Fiquei
olhando para ela em silêncio. Por fim, disse:
-
Tudo bem.
-
Não, não está tudo bem. Eu me sinto egoísta por isso.
-
Cada um faz o que pode.
-
Sabe o que isso me fez lembrar? Do Theo.
Franzi
o cenho.
-
Já se esqueceu do Theo, nosso amigo do colegial?
Aí
me lembrei.
Theo
era colega de sala da Nina. Íamos juntos para a escola porque morávamos na
mesma rua. Certo dia, em uma festa, um garoto metido a besta, filho do prefeito
de uma dessas cidadezinhas do interior, começou a puxar briga com ele. A certa
altura, Theo reagiu e atirou o copo que segurava no agressor, ferindo-lhe o
rosto. Foi uma confusão!
Saímos
de lá às pressas, mas, depois daquele dia, Theo não teve mais sossego. O
garoto, patrocinado pelo pai, contratou uma gangue para perseguir nosso amigo.
Resultado: ninguém mais queria andar com ele, com receio de ser espancado. Todo
mundo se afastou de Theo, sem sutilezas. Sua mãe, apavorada, contratou
seguranças para acompanhá-lo à escola, e ele parou de sair sozinho. Nessa
época, fui a única pessoa que manteve a amizade com ele. Na hora do recreio,
circulávamos juntos pelo pátio, sob os olhares apreensivos dos colegas. Na hora
da saída, eu o acompanhava até o veículo que o levaria para casa, ao lado dos
seguranças. Nem mesmo Nina ousava chegar perto dele. Tivemos discussões
acaloradas na época.
-
Fica longe dele, Tessa. Vai sobrar para você.
-
Você quer que eu abandone o Theo? Ele ficará sem nenhum amigo. E se fosse com
você, Nina?
-
Eu nunca atiraria um copo em uma pessoa.
-
Foi um rompante. Ele já se arrependeu. Aquele garoto não parava de incomodar.
Não
desisti de Theo, mas ele acabou desistindo daquela vida. Assim que o ano
terminou, ele foi embora do Brasil. Arranjou um trampo nos Estados Unidos, caiu
fora e nunca mais voltou. Soube que se casou com uma americana e acabou
conseguindo o famigerado green card.
-
O que o Theo tem a ver com isso?
-
Naquela época, você também fez o que ninguém quis fazer.
Ela
fez uma pausa.
-
Sou sua irmã, te conheço bem e, ainda assim, me surpreendo com suas atitudes.
Na maior parte do tempo, você se comporta como se não estivesse nem aí para
nada nem para ninguém. É fácil te rotular de egoísta, sabia? Mas aí você faz
coisas que jogam tudo isso por terra. Aparentemente, são atitudes que não
combinam, mas que deixam bem claros seus conflitos.
-
Aonde você quer chegar, Nina?
-
A lugar nenhum. Já disse o que queria.
Ótimo!
Eu não queria discutir os contrapontos ao meu egoísmo retumbante naquele
momento. Nada disso era claro para mim ainda. Uma coisa de cada vez era o meu
novo lema.
-
Afinal, por que quis almoçar comigo hoje?
-
Credo, Tessa, eu preciso de um motivo?
-
Não, mas eu te conheço e sei que há um motivo.
-
Você está certa. Fiquei muito chateada com a atitude do Maurício ontem.
-
Imaginei.
-
Você foi embora, e a gente nem conversou...
-
Como você está se sentindo?
-
Mal. Sempre fico mal quando ele me trata assim.
-
E por que você deixa?
-
Ah, Tessa, não é tão simples reverter uma situação que se arrasta há anos...
Ela
fez uma pausa.
-
Nunca disse isso a ninguém, portanto espero que fique só entre nós.
Lancei
um olhar de reprovação a ela. Era óbvio que ficaria só entre nós. Eu nunca
contava nada do que ela me dizia em confidência a ninguém. Caso contrário, que
tipo de irmã seria eu?
-
Às vezes, fantasio sobre o fim do meu casamento.
Aquilo
foi surpreendente. Nunca imaginei!
Ela
prosseguiu:
-
Não quero que isso aconteça de verdade, acredite! Mas, em momentos cruciais, me
ajuda a superar uma dificuldade, a elaborar melhor um conflito, sei lá, me dá
uma liberdade que de fato não tenho. Sempre volto à relação mais disposta, se é
que me entende.
-
É claro que eu entendo, Nina. Toda mulher faz isso.
Ela
me olhou confusa.
-
Como assim? Faz o quê?
-
Fantasia a respeito de coisas que não pode ter de verdade. E isso acaba gerando
satisfação.
-
É, mas recentemente ando preocupada. Preocupada comigo em relação ao Maurício.
Será que as coisas vão melhorar? Acho que a crise no seu casamento foi uma
espécie de gatilho. Mas, por favor, não estou te culpando.
-
Sei que não está – tentei acalmá-la.
Mas
quem começava a ficar preocupada era eu. Nina nunca tinha falado assim antes.
-
Bem, eu só queria te contar, Tessa. Pôr para fora. Você deve estar satisfeita,
não é? Nunca gostou dele...
-
Pare de dizer tolices, Nina. Não tenho nada contra ele.
Diplomacia!
Na verdade, nunca fui com a cara dele mesmo. E você já sabe disso. Maurício era
corretor de valores, o que o tornava alvo fácil para acusações de ser um
sujeito chato. Mas ele era mesmo. Tinha boa aparência, ganhava rios de dinheiro
e era grosseiro com as pessoas, sobretudo com a minha irmã. Até Inácio, que
estava sempre tentando achar o lado bom das pessoas, concordava que ele era
osso duro de roer.
Resolvi
aprofundar o assunto quando percebi que Nina havia estancado naquele ponto.
-
Me diga uma coisa, Nina: sua preocupação tem a ver com o fato de a fantasia
estar tentando se concretizar?
Ela
fez uma expressão de horror.
-
Não, Tessa, imagina! Na ficção, é tudo mais fácil, mas se separar de alguém na
vida real não é tão simples. Há uma quantidade significativa de coisas que
precisam ser levadas em conta. Enfim, é complicado. E, com filhos, mais ainda.
A gente acaba se separando de muito mais do que apenas uma pessoa. Dá adeus a
uma vida inteira. E não se faz isso por capricho ou em um momento em que as
coisas não vão bem.
Tive
que concordar com ela. Nina tinha razão. Como ela era lúcida!
Certa
vez, uma amiga me disse que o fim de um casamento é a coisa mais triste do
mundo. É exagero, claro. Não é a coisa MAIS triste. Mas é triste, sim. Ninguém
se casa projetando um divórcio. A gente se casa acreditando que vai dar tudo
certo, que vai funcionar. E, quando não funcional, é arrasador.
-
Além do mais – ela completou – há um fato curioso: não quero outro homem. Ainda
que venha a me separar de Maurício um dia, não consigo me ver com outra pessoa.
-
Não consegue agora... – tentei dizer, achando aquilo muito radical.
-
Não, Tessa, é sério. Acho que é uma das únicas certezas que tenho na vida. Se
algum dia eu não quiser mais ficar com ele, acho que ficarei sozinha.
-
Você é que é surpreendente, Nina! – falei, sem ter mais o que dizer.
Voltei
para casa pensando na conversa com Nina. Minha nova versão em tons sépia me
permitia refletir sobre as coisas sem reagir tanto. Nos velhos tempos, eu diria
que Nina estava acomodada, que se contentava em permanecer infeliz dentro do
casulo seguro do casamento. Agora eu não tinha mais tanta certeza. E não me
sentia a dona da verdade. Aliás, na tentativa de ser a dona da verdade, acabei
me transformando em uma voz solitária no deserto, brandindo para mim mesma, num
monólogo enfadonho.
Quem
era eu para julgar Nina? Eu estava sozinha. E sentia muita falta do tempo em
que acordava aquecida, segura e amada. Embora eu e Inácio não tivéssemos
rompido definitivamente, eu não podia afirmar que estávamos apenas dando um tempo.
Queria que isso fosse verdade, mas podia não ser. Talvez o fim do nosso
casamento fosse inevitável, o que me deixava numa situação pior que a de Nina.
Durante
o almoço, ela dissera:
-
Tudo me parece meio prematuro, Tessa. Não acho que Inácio esteja pretendendo se
separar de você.
No
fundo, Nina tentava convencer a si mesma. Sem protestar, eu apenas disse:
-
Inácio não é um homem de decisões prematuras, Nina.
E
isso era o que mais me preocupava.
Fui
saudada por Bela assim que atravessei os portões da Vila Mariana.
Sentia-me triste pela falta que Inácio me fazia e
pela perspectiva de perdê-lo para sempre, mas ao mesmo tempo estava
estranhamente calma.
Como
eu não tinha a mínima ideia do que fazer com o tempo livre, troquei de roupa e
caminhei até o jardim em busca de consolo. Mexi e remexi a terra durante umas
três horas, parando apenas para beber água e ir ao banheiro. Estava quase
encerrando as atividades, quando subitamente Bela eriçou os pelos das costas,
levantou as orelhas, correu em direção ao portão da casa e uivou.
Ela
nunca uivava, a não ser que...
Não podia ser!!!
Corri em disparada até lá e, assim que cruzei o
umbral da porta, confirmei minhas suspeitas: Inácio estava ali parado, olhando
para mim, com seus olhos penetrantes.
Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira
Gosto muito da forma que vc "enxerga" e descreve os conflitos e os diálogos internos! muito bom, Cynthia!
ResponderExcluir