Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

CAPÍTULO 15



Ainda bem que minha resolução era firme. Bem, eu tinha essa vantagem: minhas convicções costumavam ser robustas. Caso contrário, eu poderia ter mudado de ideia com o que aconteceu a seguir. Em outros tempos, seria mais que suficiente para me convencer de que eu não queria nada daquilo. É incrível perceber como certas situações me serviram de desculpa durante tanto tempo.

Decidi me abrir com Nina. Eu precisava falar com alguém sobre tudo o que estava acontecendo comigo.

Então, saí do isolamento e fui à casa da minha irmã.

- Oba! Minha irmã reclusa deu o ar da graça! – ela comemorou assim que me viu.

Era brincadeira, mas eu sabia que Nina estava preocupada comigo. Aliás, ela andava tensa desde que Inácio tinha ido embora. Ela era muito maternal. Agora eu conseguia reconhecer, embora nunca tivesse dado o devido valor a isso.

Contei a ela, de forma resumida, o que experimentei internamente naqueles dias e concluí, dizendo que tinha decidido me dar uma chance no que dizia respeito à maternidade. Se Inácio ainda estivesse disposto, o que eu não tinha certeza, eu ia tentar engravidar. Os olhos de minha irmã se encheram de lágrimas. Ela se emocionou profundamente e aquilo acabou me deixando emocionada também.

Infelizmente, Maurício, o homem que não dava uma dentro, chegou em casa naquele exato momento. Entrou pela porta da sala e nos encarou, perplexo.

- O que está acontecendo?

- Nada, meu amor. Apenas me emocionei com algo que a Tessa acabou de me dizer.

Nina era muito delicada. Tomei nota daquilo. Eu precisava aprender muitas coisas com ela.

Maurício me olhou, buscando uma confirmação. Eu não disse nada.

Então, ele se virou para Nina e falou, sem um pingo de sensibilidade:

- Você é tão dramática, Nina!

Aquele comentário foi como um balde de água fria.

Tive vontade de dizer a ele algumas coisas que estavam entaladas há anos. Contudo, eu tinha me proposto a mudar. Ser uma nova Tessa. E isso implicava evitar confrontos inúteis, com efeitos colaterais devastadores. Eu acabaria magoando minha irmã, a única pessoa ali que não merecia ser chamuscada. Por isso, respirei fundo e não disse nada.

       Acho que Maurício ficou decepcionado com o silêncio geral. Tive a impressão de que ele desejava uma contenda. Devia ter tido um dia ruim e, quando me viu, vislumbrou uma adversária à altura. Sim, porque ser grosseiro com Nina não faria com que ela reagisse, mas faria com que eu partisse em sua defesa imediatamente. Em outros tempos.

       Sem nos dar nem “boa noite”, ele caminhou pelo corredor e desapareceu, o que foi um alívio. Contudo, para minha consternação, seu sumiço durou pouco. Logo, ele voltou, vestido casualmente, livre dos vestígios de sua persona profissional (mas, infelizmente, sem ter conseguido se livrar dos vestígios de sua persona bestial) e despejou uma série de perguntas (que mais pareciam acusações) sobre Nina:

       - As meninas já tomaram banho?

       - Sim.

       - Fizeram o dever?

       - Fizeram.

       - Jantaram?

       - Jantaram – Nina respondia a tudo calmamente. Eu não entendia como ela conseguia.

       - Você não deu porcaria, né?

       - Claro que não. Comeram salada, arroz integral, feijão e carne.

       - Ótimo!

       Ele entrou na cozinha.

       Aquele stress todo era porque ela estava ali perdendo tempo comigo? Dando atenção à sua irmã, quando deveria estar cuidando exclusivamente das meninas? Ele estava ressentido com o fato de Nina estar me consolando?

       Então, quando parecia que não poderia piorar, ele voltou, com a fisionomia alterada.

       - Você esqueceu a janela da área de serviço aberta. Choveu lá. Quando terminar aí, seca tudo, porque está perigoso. As meninas podem escorregar.

       Dessa vez, tive que respirar muito fundo. Profundamente. Por que ele mesmo não secava? E que cobrança bizarra era aquela? Aquilo ali era uma instituição militar e minha irmã tinha que ser o soldadinho perfeito?

       Nina ficou mortificada, como se tivesse cometido um crime grave. Fiquei com muita pena dela, porque percebi que Maurício conseguiu atingir o alvo.

       Decidi ir embora, pois estava claro que era a minha presença ali que estava incomodando. Despedi-me das meninas e de Nina e parti, sem me preocupar em dar tchau para Maurício.

       No carro, a caminho da Vila Mariana, tentei entender aquele desequilíbrio óbvio no casamento da minha irmã. Ela era tão boa e doce. Por que o marido a tratava tão mal? De forma tão injusta? E por que ela não reagia? O fato de ser tão boa e doce tinha a ver com isso?

       Lembrei-me então de um artigo recente que havia lido. Nele, o autor, Yashar Axi, falava de um tipo de bullying ainda desconhecido pela maioria: o bullying sexista. Comecei a achar que Maurício se encaixava em sua descrição.

       Yashar explica que frases como “Você é tão sensível”, “Você está exagerando”, “Calma! Relaxe! Pare de surtar”, “Você está louca! Eu estava só brincando, não tem senso de humor?”, entre outras, não são falta de consideração, como se costuma pensar, mas manipulação emocional, pura e simples. Da pior espécie.

       Segundo ele, há uma epidemia disso atualmente, que define as mulheres como loucas, irracionais, exageradamente sensíveis e confusas. Ele chama esse tipo de reação de “gaslaitear”, que, na verdade, é uma adaptação para o português do termo “gaslighting”, usado com frequência por profissionais da área de saúde mental para descrever comportamento manipulador usado para induzir pessoas a acreditarem que suas reações são insanas.

        Um parêntese para dizer que o termo original se deve ao filme Gaslight, produzido pela MGM, em 1944, e estrelado por Ingrid Bergman. Na história, seu marido, interpretado por Charles Boyer, quer tomar sua fortuna e se dá conta de que pode conseguir isso fazendo com que ela pareça louca e seja recolhida a uma instituição mental. Para tanto, ele prepara as lâmpadas de gás (no inglês, “gaslights”) de sua casa para ligarem e desligarem alternadamente. Toda vez que a personagem reage a isso, ele alega que ela está vendo coisas. Daí que uma pessoa gaslaiteadora é aquela que apresenta informação falsa para alterar a percepção da vítima sobre si mesma. Tenho verdadeira aversão a homens que fazem isso.

        O autor enfatiza ainda que a forma de gaslaitear nem sempre é premeditada ou intencional, como no filme, o que a torna ainda mais sutil. Na relação entre Nina e Maurício, eu notava claramente como as falas dele provocavam tristeza e frustração nela. E, quando ela reagia, o que era extremamente raro, ele a fazia se sentir desconfortável e insegura, como se seus sentimentos fossem anormais ou irracionais.

        E por que isso acontecia, afinal? Yashar responde: Porque é muito fácil manipular emocionalmente quem foi condicionado pela sociedade nesse sentido. Os homens continuam a impor isso sobre as mulheres pelo simples fato de que elas não recusam esse fardo. Ponto final.

        Algumas vezes, os comentários irônicos soam inócuos e aparecem entre sorrisos: “Você é tão sensível”. Mas, de fato, o que está embutido ali é uma crítica. Naquele contexto, a pessoa está emitindo um julgamento sobre como a outra deveria se sentir.

        Lidar com isso, felizmente, não é uma verdade universal para todas as mulheres. Inácio não é um gaslaiteador. O que me faz admirá-lo ainda mais. Talvez a experiência com Maurício tenha tido esse caráter instrutivo: me fazer enxergar, mais uma vez, o quanto Inácio era um homem distinto. Estando entre muitos, ele pensava e agia como ele. Uma raridade.

        Por que Nina suportava o peso da neurose do marido? – era a pergunta que eu tentava responder. Eu tinha medo de que ela acabasse se tornando emocionalmente muda. Ou passivo-agressiva. Lembrei de seus muitos “Me desculpe” e “Sinto muito”. E aí recordei que Irene tivera comportamento parecido em nossa breve conversa ao telefone: “Sinto muito, Tessa”, “Me desculpe, Tessa”. Será que ela passava (ou passou) por algo parecido? Seria seu ex-marido ou seu chefe um gaslaiteador? Foi isso que a fez se apaixonar perdidamente pelo meu marido, um homem incapaz de matar uma mosca com as mãos, o que dirá constranger emocionalmente uma mulher? Eu não tinha como saber. Talvez nunca tivesse nenhuma dessas respostas. O que eu sabia é que a forma como um homem (que importa, é claro) nos vê impacta enormemente o modo como nós mesmas nos enxergamos. Raramente, é diferente. O comportamento gaslaiteador rouba algo precioso de uma mulher: sua voz. Vai minando, dia a dia, o que ela tem de mais rico. E constrói publicamente a imagem das mulheres como loucas. Enxergar isso é uma libertação!

       Muitas teorias apontam o que estaria por trás desse comportamento, que acaba sendo rotulado de “a neurose dos homens”.  Seria a crença masculina de que as opiniões femininas têm (ou deveriam ter) menos peso que as deles? Que o que as mulheres têm a dizer e o que sentem não é tão legítimo quanto o que eles dizem e sentem?

       Ainda acho que alguns homens simplesmente não sabem lidar com o brilho de suas companheiras, sejam elas namoradas, esposas ou colegas de trabalho. Necessitam competir com elas e diminuí-las para provar sua força. Mas essa assertiva pode servir também para aquelas mulheres que competem com os homens e não sabem administrar o sucesso do parceiro. Cada vez mais, tenho visto isso. E lamento profundamente que as mulheres estejam se esforçando tanto para se igualar aos homens no que eles têm de pior. Nisso me incluo também.

       Anne Morrow Lindbergh, citando o poeta alemão Rilke, fala sobre uma relação em que prevaleça um amor mais humano – que se basta, infinitamente respeitoso e delicado. Em síntese, um amor em que as duas solitudes se protejam, se toquem e se acolham. Um relacionamento de pessoas, não de gladiadores. Era o que eu queria ter com Inácio, a partir dali. Até então, eu vinha me comportando como uma gladiadora sanguinária. Talvez ele não fosse um gaslaiteador, mas eu sim.

       Lembrei-me, com uma pontada de dor, de que Inácio sempre contra-atacava as minhas grosserias com delicadezas. Ele não fazia o menor esforço para lançar uma contraofensiva, e isso muitas vezes chegou a me irritar. Ele era gentil e educado. O oposto de Maurício. E de mim também. Era duro admitir, mas era verdade. Aos meus comentários debochados, ele sempre devolvia um suspiro sincero.

       Voltando a Rilke, eu reconhecia que o panorama traçado era belíssimo. Mas havia uma pergunta que não queria calar: como alcançá-lo na vida real? Como conseguir um casamento assim fora das palavras de um poeta?

       Pela primeira vez na vida, não encarei isso como uma tragédia. Era, sim, um conceito bonito e teórico. Uma bela imagem. E eu devia me lembrar de que a teoria sempre precedia a exploração. Dizer que era utópico e inacessível resolveria a questão, mas eu precisava ir além. Não pretendia alcançar o céu, mas queria (e queria de verdade) elevar a nossa relação a um patamar superior. Estava realmente disposta a amadurecer e a dar demonstrações disso com atitudes conscientes, respaldadas por um propósito sincero, que era o resultado do meu encontro comigo mesma, com o meu núcleo verdadeiro. Um encontro que tinha começado a acontecer na Vila Mariana e que estava em curso naquele exato instante.

       Voltei então à Nina e lamentei que seu casamento mantivesse um padrão tão ultrapassado de dominação e submissão, possessividade e competição, e que ninguém ali estivesse sinalizando uma mudança.

       Maurício era um homem controlador e sufocante. Ele queria decidir tudo, todas as coisas tinham que ser feitas do seu jeito ou com o seu aval, senão não eram boas o suficiente. Estava sempre apontando o que Nina não tinha feito ou não tinha executado com perfeição. Eu ficava horrorizada com o nível de exigência dele e com a submissão dela. Isso era tão óbvio, que até mesmo Inácio, que via bondade em tudo, reconheceu, certa vez, que Maurício tolhia Nina.

       Infelizmente, eu não sabia como abordar essa questão com ela. E não sabia também se tinha esse direito. Contudo, algo vinha me preocupando: as meninas eram uns doces, mas estavam começando a reproduzir o comportamento do pai. Estavam se mostrando superexigentes com Nina e, vira e mexe, faziam críticas a ela e ao seu desempenho – se ela não conseguisse ser uma mãe ultrassônica, estava seriamente encrencada.


 
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          Quando estacionei em frente à casa, avistei Daniel no jardim, em frente ao seu chalé. Ele tinha voltado. Acenei de longe, mas ele fez um sinal para que eu me aproximasse. Achei que seria indelicado recusar. Então, caminhei em sua direção. E, no trajeto, notei que havia algo diferente nele. Seu rosto parecia inchado. À medida que me aproximava, vi que sua testa, seu nariz e suas bochechas continham vários cortes e hematomas.

   - O que houve, Daniel?

   - Você não vai acreditar, Tessa... – os músculos do seu rosto se contraíram. Trombei com um morcego.

   - O quê? - perguntei, desconcertada.

  - Voltei de viagem ontem à noite e saí para uma pedalada. Lá pelas tantas, dei de cara com um morcego.

   - Você está brincando! - falei, tentando segurar o riso.

   - Não, é sério. Sempre ouvi dizer que esse bicho tinha radar, sonar, sei lá o que, mas não tem porcaria nenhuma. Deu de cara comigo e cravou suas garras em mim.

   - Que horror!

   - Olha esses cortes! - apontou o rosto.

   - Você foi ao hospital?

   - Não! Desinfetei e fiz um curativo eu mesmo.

  - Você devia ter ido, Daniel. Morcegos transmitem raiva. Puxa, esse corte aqui foi profundo, hein?! - apontei sua bochecha direita.

   - Acha que vai ficar uma cicatriz?

   - Este é o menor dos seus problemas. O seu morcego pode estar infectado. Procure um médico.

   - Quem você sugere? Seu marido? – Daniel estreitou os olhos, com ar de desprezo.

  - Bem, se ele estivesse aqui, certamente te encaminharia a um hospital.

   - Não, não vou.

          Fez uma pausa e completou:

   - Estou furioso com esse bicho!

   - Bom, é um dos sintomas. Cuidado!

          Logo me arrependi da brincadeira.

   - Se precisar de algo, pode contar comigo, Daniel. Se decidir ir ao hospital, posso te levar.

   - Ok, Tessa, mas não vou mesmo.

          Assim que fechei a porta de casa, dei uma risada. Coitado! Era trágico, mas era cômico também. Nunca ouvi falar de ninguém que tivesse dado de cara com um morcego. E só então me dei conta do simbólico por trás daquilo. Justo um morcego? Seria um sinal?
 
 
 
 
          Texto: Cynthia França
 
          Revisão: Arilma Peixoto
 
          Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira


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