Ainda bem que minha resolução era firme. Bem, eu
tinha essa vantagem: minhas convicções costumavam ser robustas. Caso contrário,
eu poderia ter mudado de ideia com o que aconteceu a seguir. Em outros tempos,
seria mais que suficiente para me convencer de que eu não queria nada daquilo.
É incrível perceber como certas situações me serviram de desculpa durante tanto
tempo.
Decidi me abrir com Nina. Eu precisava falar com
alguém sobre tudo o que estava acontecendo comigo.
Então, saí do isolamento e fui à casa da minha
irmã.
- Oba! Minha irmã reclusa deu o ar da graça! – ela
comemorou assim que me viu.
Era brincadeira, mas eu sabia que Nina estava
preocupada comigo. Aliás, ela andava tensa desde que Inácio tinha ido embora.
Ela era muito maternal. Agora eu conseguia reconhecer, embora nunca tivesse
dado o devido valor a isso.
Contei a ela, de forma resumida, o que
experimentei internamente naqueles dias e concluí, dizendo que tinha decidido me
dar uma chance no que dizia respeito à maternidade. Se Inácio ainda estivesse
disposto, o que eu não tinha certeza, eu ia tentar engravidar. Os olhos de
minha irmã se encheram de lágrimas. Ela se emocionou profundamente e aquilo
acabou me deixando emocionada também.
Infelizmente, Maurício, o homem que não dava uma
dentro, chegou em casa naquele exato momento. Entrou pela porta da sala e nos
encarou, perplexo.
- O que está acontecendo?
- Nada, meu amor. Apenas me emocionei com algo que
a Tessa acabou de me dizer.
Nina era muito delicada. Tomei nota daquilo. Eu
precisava aprender muitas coisas com ela.
Maurício me olhou, buscando uma confirmação. Eu
não disse nada.
Então, ele se virou para Nina e falou, sem um
pingo de sensibilidade:
- Você é tão dramática, Nina!
Aquele comentário foi como um balde de água fria.
Tive vontade de dizer a ele algumas coisas que
estavam entaladas há anos. Contudo, eu tinha me proposto a mudar. Ser uma nova
Tessa. E isso implicava evitar confrontos inúteis, com efeitos colaterais
devastadores. Eu acabaria magoando minha irmã, a única pessoa ali que não
merecia ser chamuscada. Por isso, respirei fundo e não disse nada.
Acho
que Maurício ficou decepcionado com o silêncio geral. Tive a impressão de que
ele desejava uma contenda. Devia ter tido um dia ruim e, quando me viu,
vislumbrou uma adversária à altura. Sim, porque ser grosseiro com Nina não
faria com que ela reagisse, mas faria com que eu partisse em sua defesa
imediatamente. Em outros tempos.
Sem
nos dar nem “boa noite”, ele caminhou pelo corredor e desapareceu, o que foi um
alívio. Contudo, para minha consternação, seu sumiço durou pouco. Logo, ele
voltou, vestido casualmente, livre dos vestígios de sua persona
profissional (mas, infelizmente, sem ter conseguido se livrar dos vestígios de
sua persona bestial) e despejou uma série de perguntas (que mais
pareciam acusações) sobre Nina:
-
As meninas já tomaram banho?
-
Sim.
-
Fizeram o dever?
-
Fizeram.
-
Jantaram?
-
Jantaram – Nina respondia a tudo calmamente. Eu não entendia como ela
conseguia.
-
Você não deu porcaria, né?
-
Claro que não. Comeram salada, arroz integral, feijão e carne.
-
Ótimo!
Ele
entrou na cozinha.
Aquele
stress todo era porque ela estava ali perdendo tempo comigo? Dando
atenção à sua irmã, quando deveria estar cuidando exclusivamente das meninas?
Ele estava ressentido com o fato de Nina estar me consolando?
Então,
quando parecia que não poderia piorar, ele voltou, com a fisionomia alterada.
-
Você esqueceu a janela da área de serviço aberta. Choveu lá. Quando terminar
aí, seca tudo, porque está perigoso. As meninas podem escorregar.
Dessa
vez, tive que respirar muito fundo. Profundamente. Por que ele mesmo não
secava? E que cobrança bizarra era aquela? Aquilo ali era uma instituição militar
e minha irmã tinha que ser o soldadinho perfeito?
Nina
ficou mortificada, como se tivesse cometido um crime grave. Fiquei com muita
pena dela, porque percebi que Maurício conseguiu atingir o alvo.
Decidi
ir embora, pois estava claro que era a minha presença ali que estava
incomodando. Despedi-me das meninas e de Nina e parti, sem me preocupar em dar
tchau para Maurício.
No
carro, a caminho da Vila Mariana, tentei entender aquele desequilíbrio óbvio no
casamento da minha irmã. Ela era tão boa e doce. Por que o marido a tratava tão
mal? De forma tão injusta? E por que ela não reagia? O fato de ser tão boa e
doce tinha a ver com isso?
Lembrei-me
então de um artigo recente que havia lido. Nele, o autor, Yashar Axi, falava de
um tipo de bullying ainda desconhecido pela maioria: o bullying
sexista. Comecei a achar que Maurício se encaixava em sua descrição.
Yashar
explica que frases como “Você é tão sensível”, “Você está exagerando”, “Calma!
Relaxe! Pare de surtar”, “Você está louca! Eu estava só brincando, não tem
senso de humor?”, entre outras, não são falta de consideração, como se costuma
pensar, mas manipulação emocional, pura e simples. Da pior espécie.
Segundo
ele, há uma epidemia disso atualmente, que define as mulheres como loucas,
irracionais, exageradamente sensíveis e confusas. Ele chama esse tipo de reação
de “gaslaitear”, que, na verdade, é uma adaptação para o português do termo
“gaslighting”, usado com frequência por profissionais da área de saúde mental
para descrever comportamento manipulador usado para induzir pessoas a
acreditarem que suas reações são insanas.
Um parêntese para dizer que o termo
original se deve ao filme Gaslight,
produzido pela MGM, em 1944, e estrelado por Ingrid Bergman. Na história, seu
marido, interpretado por Charles Boyer, quer tomar sua fortuna e se dá conta de
que pode conseguir isso fazendo com que ela pareça louca e seja recolhida a uma
instituição mental. Para tanto, ele prepara as lâmpadas de gás (no inglês,
“gaslights”) de sua casa para ligarem e desligarem alternadamente. Toda vez que
a personagem reage a isso, ele alega que ela está vendo coisas. Daí que uma
pessoa gaslaiteadora é aquela que apresenta informação falsa para alterar a
percepção da vítima sobre si mesma. Tenho verdadeira aversão a homens que fazem
isso.
O
autor enfatiza ainda que a forma de gaslaitear nem sempre é premeditada ou
intencional, como no filme, o que a torna ainda mais sutil. Na relação entre
Nina e Maurício, eu notava claramente como as falas dele provocavam tristeza e
frustração nela. E, quando ela reagia, o que era extremamente raro, ele a fazia
se sentir desconfortável e insegura, como se seus sentimentos fossem anormais
ou irracionais.
E
por que isso acontecia, afinal? Yashar responde: Porque é muito fácil manipular
emocionalmente quem foi condicionado pela sociedade nesse sentido. Os homens
continuam a impor isso sobre as mulheres pelo simples fato de que elas não
recusam esse fardo. Ponto final.
Algumas
vezes, os comentários irônicos soam inócuos e aparecem entre sorrisos: “Você é
tão sensível”. Mas, de fato, o que está embutido ali é uma crítica. Naquele
contexto, a pessoa está emitindo um julgamento sobre como a outra deveria se
sentir.
Lidar
com isso, felizmente, não é uma verdade universal para todas as mulheres.
Inácio não é um gaslaiteador. O que me faz admirá-lo ainda mais. Talvez a
experiência com Maurício tenha tido esse caráter instrutivo: me fazer enxergar,
mais uma vez, o quanto Inácio era um homem distinto. Estando entre muitos, ele
pensava e agia como ele. Uma raridade.
Por
que Nina suportava o peso da neurose do marido? – era a pergunta que eu tentava
responder. Eu tinha medo de que ela acabasse se tornando emocionalmente muda.
Ou passivo-agressiva. Lembrei de seus muitos “Me desculpe” e “Sinto muito”. E
aí recordei que Irene tivera comportamento parecido em nossa breve conversa ao
telefone: “Sinto muito, Tessa”, “Me desculpe, Tessa”. Será que ela passava (ou
passou) por algo parecido? Seria seu ex-marido ou seu chefe um gaslaiteador?
Foi isso que a fez se apaixonar perdidamente pelo meu marido, um homem incapaz
de matar uma mosca com as mãos, o que dirá constranger emocionalmente uma
mulher? Eu não tinha como saber. Talvez nunca tivesse nenhuma dessas respostas.
O que eu sabia é que a forma como um homem (que importa, é claro) nos vê
impacta enormemente o modo como nós mesmas nos enxergamos. Raramente, é
diferente. O comportamento gaslaiteador rouba algo precioso de uma mulher: sua
voz. Vai minando, dia a dia, o que ela tem de mais rico. E constrói publicamente
a imagem das mulheres como loucas. Enxergar isso é uma libertação!
Muitas
teorias apontam o que estaria por trás desse comportamento, que acaba sendo
rotulado de “a neurose dos homens”.
Seria a crença masculina de que as opiniões femininas têm (ou deveriam
ter) menos peso que as deles? Que o que as mulheres têm a dizer e o que sentem
não é tão legítimo quanto o que eles dizem e sentem?
Ainda
acho que alguns homens simplesmente não sabem lidar com o brilho de suas
companheiras, sejam elas namoradas, esposas ou colegas de trabalho. Necessitam
competir com elas e diminuí-las para provar sua força. Mas essa assertiva pode
servir também para aquelas mulheres que competem com os homens e não sabem
administrar o sucesso do parceiro. Cada vez mais, tenho visto isso. E lamento
profundamente que as mulheres estejam se esforçando tanto para se igualar aos
homens no que eles têm de pior. Nisso me incluo também.
Anne
Morrow Lindbergh, citando o poeta alemão Rilke, fala sobre uma relação em que
prevaleça um amor mais humano – que se basta, infinitamente respeitoso e
delicado. Em síntese, um amor em que as duas solitudes se protejam, se toquem e
se acolham. Um relacionamento de pessoas, não de gladiadores. Era o que eu
queria ter com Inácio, a partir dali. Até então, eu vinha me comportando como
uma gladiadora sanguinária. Talvez ele não fosse um gaslaiteador, mas eu sim.
Lembrei-me,
com uma pontada de dor, de que Inácio sempre contra-atacava as minhas
grosserias com delicadezas. Ele não fazia o menor esforço para lançar uma
contraofensiva, e isso muitas vezes chegou a me irritar. Ele era gentil e
educado. O oposto de Maurício. E de mim também. Era duro admitir, mas era
verdade. Aos meus comentários debochados, ele sempre devolvia um suspiro
sincero.
Voltando
a Rilke, eu reconhecia que o panorama traçado era belíssimo. Mas havia uma
pergunta que não queria calar: como alcançá-lo na vida real? Como conseguir um
casamento assim fora das palavras de um poeta?
Pela
primeira vez na vida, não encarei isso como uma tragédia. Era, sim, um conceito
bonito e teórico. Uma bela imagem. E eu devia me lembrar de que a teoria sempre
precedia a exploração. Dizer que era utópico e inacessível resolveria a
questão, mas eu precisava ir além. Não pretendia alcançar o céu, mas queria (e
queria de verdade) elevar a nossa relação a um patamar superior. Estava
realmente disposta a amadurecer e a dar demonstrações disso com atitudes
conscientes, respaldadas por um propósito sincero, que era o resultado do meu
encontro comigo mesma, com o meu núcleo verdadeiro. Um encontro que tinha
começado a acontecer na Vila Mariana e que estava em curso naquele exato
instante.
Voltei
então à Nina e lamentei que seu casamento mantivesse um padrão tão ultrapassado
de dominação e submissão, possessividade e competição, e que ninguém ali
estivesse sinalizando uma mudança.
Maurício
era um homem controlador e sufocante. Ele queria decidir tudo, todas as coisas
tinham que ser feitas do seu jeito ou com o seu aval, senão não eram boas o
suficiente. Estava sempre apontando o que Nina não tinha feito ou não tinha
executado com perfeição. Eu ficava horrorizada com o nível de exigência dele e
com a submissão dela. Isso era tão óbvio, que até mesmo Inácio, que via bondade
em tudo, reconheceu, certa vez, que Maurício tolhia Nina.
Infelizmente,
eu não sabia como abordar essa questão com ela. E não sabia também se tinha
esse direito. Contudo, algo vinha me preocupando: as meninas eram uns doces,
mas estavam começando a reproduzir o comportamento do pai. Estavam se mostrando
superexigentes com Nina e, vira e mexe, faziam críticas a ela e ao seu
desempenho – se ela não conseguisse ser uma mãe ultrassônica, estava seriamente
encrencada.
Quando
estacionei em frente à casa, avistei Daniel no jardim, em frente ao seu chalé.
Ele tinha voltado. Acenei de longe, mas ele fez um sinal para que eu me
aproximasse. Achei que seria indelicado recusar. Então, caminhei em sua
direção. E, no trajeto, notei que havia algo diferente nele. Seu rosto parecia
inchado. À medida que me aproximava, vi que sua testa, seu nariz e suas
bochechas continham vários cortes e hematomas.
- O que houve,
Daniel?
- Você não vai
acreditar, Tessa... – os músculos do seu rosto se contraíram. Trombei com um
morcego.
- O quê? -
perguntei, desconcertada.
- Voltei de viagem
ontem à noite e saí para uma pedalada. Lá pelas tantas, dei de cara com um
morcego.
- Você está
brincando! - falei, tentando segurar o riso.
- Não, é sério.
Sempre ouvi dizer que esse bicho tinha radar, sonar, sei lá o que, mas não tem
porcaria nenhuma. Deu de cara comigo e cravou suas garras em mim.
- Que horror!
- Olha esses
cortes! - apontou o rosto.
- Você foi ao
hospital?
- Não!
Desinfetei e fiz um curativo eu mesmo.
- Você devia ter
ido, Daniel. Morcegos transmitem raiva. Puxa, esse corte aqui foi profundo,
hein?! - apontei sua bochecha direita.
- Acha que vai
ficar uma cicatriz?
- Este é o menor
dos seus problemas. O seu morcego pode estar infectado. Procure um médico.
- Quem você sugere?
Seu marido? – Daniel estreitou os olhos, com ar de desprezo.
- Bem, se ele
estivesse aqui, certamente te encaminharia a um hospital.
- Não, não vou.
Fez
uma pausa e completou:
- Estou furioso com
esse bicho!
- Bom, é um dos
sintomas. Cuidado!
Logo
me arrependi da brincadeira.
- Se precisar de
algo, pode contar comigo, Daniel. Se decidir ir ao hospital, posso te levar.
- Ok, Tessa, mas
não vou mesmo.
Assim
que fechei a porta de casa, dei uma risada. Coitado! Era trágico, mas era
cômico também. Nunca ouvi falar de ninguém que tivesse dado de cara com um
morcego. E só então me dei conta do simbólico por trás daquilo. Justo um
morcego? Seria um sinal?
Excelente texto!!!!
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