Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

CAPÍTULO 14



Leila Ferreira diz que talvez a gente escolha o que consegue, não o que quer. Nossas limitações é que definem, em grande medida, como vivemos.

Sempre me perguntei se minha vida consistia numa fuga, ao invés de uma busca. Apesar disso, nunca me empenhei o suficiente para obter uma resposta.

Tinha chegado a hora. Não dava mais para adiar.

Iara não teve tempo para criar o roteiro de vida com que sonhou. Eu ainda tinha. Mas precisava descobrir que roteiro era esse.

O mais tentador era responsabilizar Inácio pela situação caótica do nosso casamento e aceitar a solução mais “fácil” – encontrar um novo parceiro “mais compreensivo”. Mas isso não colava mais.  Depois que você compreende certas coisas, é impossível voltar atrás.

Optei por um novo isolamento na Vila Mariana. Alegando stress, consegui alguns dias de licença. Felizmente, Daniel tinha viajado a trabalho. Não que ele representasse algum risco àquela altura. Mas a quietude na casa vizinha era providencial. O contato com a natureza também. Acho que já deixei bem claro que a imersão no mundo natural sempre se revestiu de um significado especial para mim. Sinto-me em paz, em harmonia comigo mesma, ou o mais próximo disso.

Naqueles dias, fiz uma opção incomum: nada de TV, nada de livros, nada de nada. Apenas eu comigo mesma. Algo me dizia que somente assim eu seria capaz de permitir que o genuíno florescesse. E quando digo genuíno, quero significar aquilo que é meu de verdade, que me pertence desde sempre. O que está dentro de mim, mas não está visível.

Obviamente, não foi tarefa fácil. A sensação de estar me rebelando contra a minha própria mente me assaltava o tempo inteiro. Mas consegui manter o propósito de viver de uma forma mais primitiva. Eu queria me esvaziar para, em seguida, me preencher. E, nesse processo, tentar apagar algumas marcas aparentemente indeléveis.

Não tinha a mínima ideia do que seria lançado ao meu consciente. Mas – e nesse “mas” está a questão mais importante - precisava correr o risco. Esse era um salto importante.

Eu já sabia que não se tratava de escavar ou desenterrar. Bastava estar aberta e sem exigências. Seria um encontro comigo mesma. Uma oportunidade de me reconhecer e me abraçar. Um plano ambicioso? Nem tanto. Eu diria que era um plano delicado.

No início, tudo o que senti foi uma apatia profunda. Porém, aos poucos, fui conseguindo me conectar comigo mesma.

Sempre usei as disciplinas intelectuais como formas de defesa contra a sensibilidade. Tinha chegado a hora de escutar o sentir.

A escuridão me acompanhou enquanto caminhei pelo jardim na terceira noite. Sentei-me em um banquinho de pedra e ouvi o som dos grilos. Observei a lua. O cheiro de terra molhada e a brisa fresca eram reconfortantes. Aos poucos, eu conseguia me desprender da minha ansiedade.

A resposta para tudo estava dentro de mim, eu sabia. Mas, para encontrá-la, eu teria que ser honesta comigo mesma, o que implicava reconhecer que a liberdade que eu tinha para escolher se referia inclusive à possibilidade de trocar de concha, como o caranguejo-eremita. Mas essa constatação não me assustou. Àquela altura, a minha concha já não servia mais e eu tinha noção do que me esperava. E sabia também que, se decidisse por um filho, aquilo não poderia ser um fim em si mesmo, mas a base para uma nova relação, mais profunda - comigo mesma, com Inácio e com a criança.

O medo de perder a minha identidade desapareceu. Entendi que só a encontraria – a verdadeira identidade - quando mergulhasse em meu interior e me conhecesse profundamente. Para isso, eu precisaria me livrar de todo o peso morto.


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   Gloria Steinem disse que o primeiro problema para todos nós, homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender. Eu que o diga!

           Naqueles dias, convivi de perto com a insatisfação, a inquietude, o medo, o desespero e a nostalgia. Alguns diriam que são as dores inerentes ao crescimento. Acho que são mesmo.

           Decidi confrontar os meus fantasmas, um a um, numa tentativa de exorcizá-los. No fim, você dirá se me saí bem ou não.

           Parti do ponto menos crítico para mim: o meu desejo de ser amada com exclusividade por Inácio. Para alguns, pode parecer horroroso e cruel, mas garanto que foi a parte mais fácil.

           Fui privada do amor de mãe, isso não é novidade para ninguém. E por mais que meu pai tenha feito malabarismos para exercer os papéis que cabiam a ele e a ela, ficou uma lacuna. Afinal, ele não tinha superpoderes.

           Com a conveniente desculpa da ausência materna, eu convenci a mim mesma de que tinha direito a um amor exclusivo e joguei esse fardo nas costas de Inácio, um homem bom, que estava disposto a me amar, mas não incondicionalmente. Foi essa percepção que me sacudiu e me obrigou a sair da minha zona de conforto e acender as luzes.

           A partida dele me fez enxergar que o amor exclusivo é um erro. Não há nada único e exclusivo, há momentos assim. E desejar isso é negar o crescimento, é negar a realidade. Não dividir o amor de Inácio com um filho era uma desculpa egoísta e ilusória. Até Mel era capaz de entender isso. Certo dia, ela me disse: “Tia Tessa, no coração humano cabem muitos amores”. Na época, achei bonitinho, mas infantil. Agora começava a fazer sentido.

           Foi preciso aceitar também o fato de que retornar a uma forma antiga de relacionamento estava fora de cogitação. Não ia acontecer. Inácio tinha dito que as pessoas mudam, e o relacionamento tem que acompanhar. Ele estava certo. É impossível manter um relacionamento numa forma única. E isso não deve ser visto como uma tragédia. Todos os relacionamentos vivos mudam, sofrem expansão, ensaiam novas formas. Digo vivos, porque os cristalizados são outra história.

           Portanto, não é válido dizer: “Você disse isso”, como se fosse a garantia inabalável de algo. Sim, Inácio disse que não fazia questão de ter filhos há dez anos. Mas ele mudou de opinião. Sempre fiz coro à “metamorfose ambulante” de Raul Seixas. Então, o que havia de errado naquilo? Por que eu estava tão furiosa com ele? Eu desejava um Inácio sempre igual, estacionário?

           Meu marido mudou muito no decorrer dos anos, e a doença alterou muitas de suas percepções. É natural. E positivo. Ele tinha amadurecido, embora me custasse admitir. E o desejo de ser pai veio nesse pacote. O que eu devia fazer? Deixar nosso casamento morrer de atrofia num padrão ultrapassado, ou mudar de padrão, partindo para novas experiências?

    Esse era o grande impasse. E algo me dizia que, para sobreviver, nosso relacionamento teria que provar que era dinâmico o suficiente para abraçar essas mudanças.

   Até aí, parece simples? Então, vamos complicar um pouco mais.

   Abraçar as mudanças que Inácio pleiteava significava me desapegar de muitas coisas – do meu orgulho, da minha vaidade, das minhas ambições (falsas ou não), das máscaras, das armaduras. Passei a vida alegando que fui moldada de acordo com a minha trágica história de vida. Minha luta pela sobrevivência é o que mais sobressaía quando olhava para trás.

  Durante a infância e a adolescência, e, depois, também na fase adulta, fui me agarrando a algumas conclusões em relação aos acontecimentos da minha vida. Cada mente reage, aceita e cria o que quer. Eu criei verdades absolutas para mim, e isso gerou uma programação interna específica, que definia o que eu precisava, e o que não precisava, para ser feliz. Tudo feito de forma inconsciente. Essas conclusões geraram alguns limitadores de comportamento, entre eles o “não ser mãe”, como única forma de me salvar frente ao perigo iminente que isso representava.

  Para sair desse círculo pernicioso, eu precisava começar por me libertar da culpa que carregava sobre os ombros. Eu me culpava pela partida da minha mãe. E me culpava também por sentir coisas ruins em relação a ela.

         Ela partiu por causa DELA, não por MINHA causa - meu pai repetiu isso a vida inteira. Ela tinha sérios problemas de saúde, eu não tinha problema algum. Muito provavelmente, ela fez o melhor para todo mundo. Já vi mulheres causarem males irreparáveis a suas famílias por não conseguirem lidar com os efeitos devastadores de uma depressão severa. Eu sabia o que era ficar deprimida. Era horrível! E o que aconteceu com ela era uma incógnita. Ela podia estar morta, ou se tratando até hoje. Eu não tinha como saber. E fantasiar a respeito não ajudava nada.

         Eu precisava abandonar também as expectativas em relação a ela, de uma vez por todas. Ela não ia voltar. E não ia me compensar por tudo. Ponto final.

         Durante muito tempo, embarquei na fantasia de que se ela voltasse e fosse legal comigo, ou se, ao invés disso, eu fosse horrível com ela, eu acabaria me sentindo melhor. Essas expectativas, contudo, só me causaram decepção e sofrimento. Era preciso mudar de perspectiva. E isso significava abandonar, de vez, aquela velha história de “a minha vida é um desastre, e a origem de tudo isso é a minha mãe”. Chega! Eu não podia me comportar como uma vítima. O que estava acontecendo na minha vida era resultado das minhas escolhas, que, por sinal, não foram muito conscientes.

         Cresça, Tessa!, repeti várias vezes. Você é que escolhe o que vai viver, é SUA responsabilidade. Pare de se comportar como uma criança abandonada e enfrente o mundo como uma mulher adulta. Chega de colocar a culpa nela! E de se culpar por ela. Não perca mais tempo acusando ninguém! Simplesmente viva!

          Isso não significava excluir a minha mãe da minha vida, até porque era impossível. O que eu precisava era transformar a minha relação com ela. E parar de me ver nas ações dela.

          Esse foi um momento difícil e crucial. Com uma súbita clareza, enxerguei a pior verdade de todas: eu estava ficando cada vez mais parecida com a minha mãe, aquela de quem tentei ser completamente diferente, com todas as minhas forças, a vida inteira. Deprimida, frustrada, desesperada, insatisfeita com a vida, eu estava ali sozinha, isolada, longe do homem que amava, presa à crença de que um filho seria a ruína da minha vida.

         Abro um parêntese para dizer que, na adolescência, cheguei a desejar não ser eu mesma. Em momentos de aflição, em que não sabia como lidar com a frustração, cheguei ao ponto de morder a pele dos braços e puxá-la com os dentes, numa tentativa desesperada de me despregar de mim mesma. De me tornar outra pessoa. Nunca contei isso para ninguém. Nem para os médicos que me trataram. Parecia errado. Além disso, admitir o fato para os outros era admiti-lo para mim mesma, e eu não estava preparada para isso.

          Que libertação! Senti as lágrimas brotarem ao mesmo tempo em que experimentei um imenso alívio. Aquilo foi uma espécie de linha divisória para mim: reconheci que tinha medo (muito medo) da mulher em que eu poderia me transformar. Ficava olhando para o passado e temia o futuro. Mas era incapaz de encarar o presente. O maior medo de todos não era ser mãe, mas me tornar a minha mãe. Paradoxalmente, eu ficava cada vez mais parecida com ela.

          Um marco! Mas eu não sabia bem o que fazer ainda. Tinha certeza de que não queria (e não podia) continuar a me sentir daquele jeito com relação à minha vida e ao meu passado. Precisava também subir mais alguns degraus no processo de autoconhecimento a que eu tinha dado start.

          As frustrações com que me deparei na infância e na adolescência me fizeram acreditar que o mundo era um lugar hostil. Assim, criei um mecanismo de defesa “poderoso” para tentar sobreviver na selva. O meu plano era ter controle absoluto sobre tudo. Foi Iara quem me abriu os olhos para essa aberração.

          Para controlar o mundo, eu aprendi a me esquivar, a me retrair, a fazer de conta que não me importava com as coisas e as pessoas, a reagir agressivamente quando me sentia ameaçada, a explicar ou a justificar os fatos para me defender ou evitar um julgamento. Enfim, criei técnicas, jogos e simulações. Tentei racionalizar tudo.

          Resultado: Inácio foi embora. Batalha perdida.

  A única saída era abrir mão do controle e me entregar para a vida. Me jogar.

          Mas como uma pessoa que passou anos morrendo de medo faz isso de um dia para o outro? Como parar de manipular as situações? Como me sentir segura?

          Era assustador.

          Mesmo assim, reconheci que o primeiro passo consistia em aceitar que eu estava tentando controlar algo. Ou melhor, tudo. E me acolher. Bastava de julgamentos e acusações.

          Sim, eu fazia isso. O tempo todo. Nunca estava aberta para receber. Não ousava optar por situações novas que envolviam riscos com medo de perder o controle. Sempre que surgia uma situação em que o controle exercido era mínimo, ou nenhum, o medo surgia e me paralisava. Uma pausa para dizer que, até certo ponto, isso é natural. No meu caso, contudo, era patológico.

          O segundo passo era encontrar um meio de me entregar e deixar a vida acontecer. Mais apavorante que o primeiro.

          Durante toda a vida, o meu Ego, com sua percepção distorcida, me fez acreditar que aqueles resultados eram os certos, os ideais. E muitas coisas se perderam, porque não foram percebidas. Eu não teria como saber que resultado seria o ideal enquanto o Ego dominasse.

          Na atitude de entrega, eu precisaria confiar e contar com a minha intuição.

          Cansei de bradar que era livre para escolher o que quisesse, que fazia o que bem entendia. A grande questão era: fazia mesmo? Até onde ia o meu livre-arbítrio? Ou tudo não passava de utopia? Na realidade, escolhia os melhores caminhos ou aqueles em que podia controlar tudo com mais facilidade, poupando-me assim dos riscos e dos sustos?

          Lembrei novamente de Iara. As escolhas eram individuais, pertenciam a cada um. A vida passa rápido. Eu devia caminhar para ser quem realmente era ou continuar me comportando como uma marionete?

          E quem eu realmente era?

          Para descobrir, eu precisava me soltar, me entregar, permitir que a vida fluísse. Aquela constatação me encheu de medo.

          Apesar disso, sabia que precisava abrir as portas e me lançar além.


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  Era o que eu faria. Estava decidido. Foi difícil assumir as minhas fragilidades e me dispor a dar um passo adiante. Mas eu tinha conseguido e agora precisava mudar o meu padrão de comportamento.

  Não existia o fora, existia o dentro – era o que eu repetia para mim o tempo inteiro. Era ali, dentro de mim, que encontraria todas as respostas. E esse exercício de olhar para dentro tinha que ser feito com muita limpeza e muito amor. De uma forma como nunca fizera antes.

  Eu precisava me dar liberdade para crescer. Precisava também correr riscos. Isso significava estar vivo. Era o que Inácio sempre dissera. E ele estava certo.

  Queria muito reencontrá-lo, mas sabia que não dava mais para ser como antes. Eu e ele teríamos que nos encontrar agora como dois seres inteiros, maduros. Somente assim poderíamos dialogar. Sim, porque tudo não era só uma questão de necessidades diferentes a serem satisfeitas. Eu tinha entrado por um desvio. Caminhávamos em direções e ritmos diferentes até aquele momento. Um novo relacionamento teria que ser criado a partir daquele ponto. Um relacionamento mais justo no vincular e no libertar. Esse era o grande desafio. Eu seria capaz disso?

  No início, cheguei a acreditar que, por Inácio, tudo valia a pena. E não deixa de ser verdade. Contudo, o que me deu forças e convicção para seguir em frente foi entender que valia a pena por mim também.

  Então, de posse de uma coragem que eu ainda tateava, decidi me lançar em mar aberto, sem bússola.


  O capítulo 15 será publicado na sexta-feira, dia 29 de novembro.
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  Texto: Cynthia França
  Revisão: Arilma Peixoto
 Colaboração: Adriano Machado, Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira

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