Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

CAPÍTULO 12


            A segunda-feira chegou e precisei voltar ao trabalho. De volta à cena, disse a mim mesma, assim que acordei.

            Como já tinha decidido permanecer na Vila Mariana até o retorno de Inácio, saí de lá bem cedo e fui ao meu apartamento separar algumas peças de roupas para os dias seguintes. Fiquei lá o mínimo de tempo possível. A lembrança de Inácio em cada cômodo era sufocante.

            Voltar à rotina de trabalho não foi fácil também. Duas semanas fora pareceram dois anos. E até no meu ambiente profissional, onde Inácio nunca pisava, as lembranças dele me causavam asfixia. A primeira providência que tomei ao sentar à minha mesa foi guardar o porta-retratos com a foto de uma de nossas viagens na gaveta. Discretamente.

            Então, Felícia, uma colega, veio falar comigo. Me atualizou sobre os últimos acontecimentos, inclusive o recente susto que levou com o filho. Foram passar uma semana em Arraial D´Ajuda. Chegando lá, o garoto, de 14 anos, começou a se sentir mal. No precário posto de saúde, identificaram um quadro de diabetes mellitus e o encaminharam às pressas ao hospital em Porto Seguro, onde não havia vagas no CTI, lugar para o qual ele deveria ir imediatamente, já que estava em pré-coma. Sem perspectivas de solução para o caso, em uma atitude corajosa, Felícia embarcou em um voo comercial para Belo Horizonte, com o adolescente desfalecendo em seus braços, e, assim que aterrissou em Confins, foi recebida pelo ex-marido, pai do garoto, que dirigiu como um louco até o hospital mais próximo, onde o menino foi direto para o CTI.

            Naquele momento, tudo estava bem. O garoto foi medicado e seus índices atingiram a normalidade. Ficou constatado que era diabético e deu início ao tratamento, com o uso de insulina.

            Bem, você deve estar imaginando que fiquei apavorada com a possibilidade de passar pela mesma experiência com um filho, não é? Contudo, não foi o que aconteceu. Por incrível que pareça, naquele momento, o que mais me tocou foi a relação dela com o ex-marido. A existência de um vínculo entre eles, para ser mais exata. Um vínculo que, provavelmente, se resumia ao filho e que se estenderia pelo resto da vida ou, pelo menos, por um bom tempo, até que o menino fosse independente.

            Era uma situação triste (no meu ponto de vista, um divórcio era sempre triste), mas era melhor do que seria se eu viesse a me separar de Inácio. Sim, porque, após a partilha de bens, não teríamos mais nenhuma razão para nos falar. Se quisesse, Inácio poderia simplesmente passar a borracha em mim. Seguir a sua vida como se eu nunca houvesse existido. Só de pensar nisso fiquei com falta de ar.

            Então, Renato, outro colega, salvou-me do iminente ataque de ansiedade, convidando-me para a reunião semanal, ocasião em que discutíamos os projetos polêmicos com que estávamos trabalhando.

            Reunidos em círculo em torno da mesa da sala de reuniões, cada consultor tinha a oportunidade de apresentar aos colegas as questões que suscitavam divergências, em busca de ideias e sugestões. Naquele dia, encerradas as discussões, Renato perguntou ao grupo se poderia apresentar um caso que tinha lhe chegado às mãos em seu escritório. Como todos os consultores daquela área eram advogados, era muito comum que mantivessem, em paralelo, escritórios de advocacia particulares.

            O grupo se animou para mais um desafio. Ninguém apresentaria um caso particular naquela reunião se não fosse algo bem cabeludo. Eu, particularmente, adorava encontrar soluções para problemas complicados. Menos para os meus, como você já deve ter notado.

            - É o seguinte – Renato começou – uma mulher, de trinta e poucos anos, perdeu seu marido em um trágico acidente de asa delta. Apenas para que entendam: o sujeito não era um aficionado por esportes radicais, mas, depois que teve problemas de saúde, decidiu se aventurar, sabe-se lá por quê. Viver no limite, nas palavras da esposa. Enfim, ele se acidentou, morreu, e ela quer autorização judicial para usar o sêmen que ele mantinha, ou melhor, mantém congelado em um banco.

            Fiquei estática. Uma onda de tensão começou a percorrer o meu corpo. Renato percebeu.

            - Você está com falta de ar, Tessa?

            - Estou um pouco gripada – respondi, zonza, com clara dificuldade para respirar.

            - Fique à vontade para se retirar. Isso aqui não é mais trabalho – ele disse, gentil.

            - Não, já está passando.

            Enquanto eu me esforçava para retomar o controle (preciso de um saco de papel, preciso de um saco de papel, pensava), eu ouvia Renato explicar que o sujeito congelou seu esperma quando descobriu a tal doença (uma espécie de coagulopatia, pelo que entendi). Ele e a esposa pretendiam usar o sêmen quando chegasse a hora. Infelizmente, a hora dele chegou antes disso. Inconsolada, a mulher queria utilizar o material e ter um filho do marido que amava. Contudo, o banco se recusava a entregá-lo, pois ele não havia deixado autorização expressa nesse sentido. Segundo constava, apenas ele poderia retirá-lo. Assim, ela tentava obter uma tutela judicial.

            Fiquei chocada com a história, sem saber o que pensar. Não queria jamais estar na pele do juiz que decidiria aquele pedido. Que situação estranha! Ter um filho de um homem que já morreu. Que objetivo isso cumpre? É certo? É justo? Ele não deixara autorização para ela retirar o sêmen. Seria porque não lhe passara pela cabeça a possibilidade de morrer ou porque não queria mesmo que o sêmen fosse utilizado na sua ausência? O homem pode muito bem ter pensado que não queria ter um filho em um mundo no qual ele não mais estivesse presente, não pode? Por outro lado, pode ter sido um descuido de sua parte. Como saber a verdade? Ouvindo a esposa? Outros familiares? Até que ponto isso seria esclarecedor?

            Era um caso complicadíssimo, e eu entendia a aflição de Renato. Se, por um lado, as novas formas de concepção facilitavam a vida de muitos casais, por outro, criavam situações que me enchiam de dúvidas. E que, inevitavelmente, atingiam em cheio o conceito tradicional de família.

            No entanto, naquele momento, o que mais me inquietava não eram os dilemas jurídicos e éticos, mas a motivação daquela mulher. Por que ela queria tanto ter um filho daquele homem? Ele já se fora. Isso não o traria de volta. Ou traria? Se ela nutria o sonho de ser mãe, poderia encontrar outro pai para o seu filho. Por que fazia tanta questão de engravidar dele? O que estava por trás de tudo aquilo afinal?

            Com a respiração mais controlada, fui conversar com Renato ao final da reunião.

            - Puxa, Renato, que sinuca de bico, hein?!

            - Nem me fala, Tessa. Está me tirando o sono...

            - Se você fosse o juiz...

            - Me pergunto isso todos os dias. Não sei o que faria.

            - Como ela é? - devo tê-lo surpreendido com a pergunta.

            - Uma graça de pessoa.

            - Olha, quero te fazer uma pergunta, mas se sinta totalmente à vontade para responder,  ok? Gostaria de conhecê-la. Você acha que é possível?

            - Tem algum interesse nesse caso, Tessa? – ele perguntou, curioso.

            Forcei-me a ser sincera com ele.

            - Quando o Inácio teve câncer, ele também congelou o sêmen.

    - Entendi. Não precisa dizer mais nada. Vou me reunir com ela na quarta. Você vem comigo. Direi que trabalhamos juntos, o que não deixa de ser verdade.

    -  Obrigada, Renato! Fico te devendo essa.

---------------------------------------------------------------------------------


            Esperei ansiosa pela quarta-feira. Naquela manhã, passei novamente pelo meu apartamento, pois era o dia em que a minha diarista, Judite, ia até lá. Quando entrei, ela já estava a todo vapor.

      - Bom dia, Judite!

      - Bom dia, dona Tessa! Será que seu Inácio volta?

            A espontaneidade dela sempre me surpreendia. Logo que ela começou a trabalhar em nossa casa, me perguntou quando teríamos filhos. Achei melhor explicar logo que aquilo não estava em nossos planos. Com o tempo e a convivência, ela acabou percebendo que não estava nos meus planos. Por isso, quando Inácio viajou, ela não teve dúvida de que aquilo era resultado da minha negativa em dar a ele um filho. Algo injustificável, na opinião dela. Mas eu não me importava com o que ela pensava – toda liberdade incomum incomoda, dizia a mim mesma.

            Mesmo assim, respondi à pergunta:

     - Espero que sim, Judite .

     - Sabe, dona Tessa, não julgo a senhora, não.

            Ah, não! Lá vem...

            É claro que ela julgava. Como todo mundo.

             - Não sei se a senhora sabe, mas, quando eu era mais nova, trabalhei na casa de um político.

     - Não, você nunca comentou nada...

            Eu não tinha ideia de onde ela pretendia chegar. Não sei nem se ela mesma tinha.

             - Ele e a mulher tinham 4 filhos. Dona Lea era o nome dela. Não trabalhava fora. Um dia, de repente, foi embora de casa e deixou os 4 meninos.

      - Foi embora? - comecei a me interessar.

      - Deixou tudo para trás e foi viver com outro homem, num outro país.

      - Sério?

      - Os meninos eram pequenos, e seu Jorge quase enlouqueceu. Fui eu que cuidei deles, até ficarem grandes. Dona Lea nunca voltou.

     - Meu Deus!

     - Soube, outro dia, que ela se arrependeu. Voltou e procurou a família. Mas agora ninguém mais quer saber dela.

     -  Mas você sabe por que ela partiu?

     - Se encantou por outro homem.

            Aquela era uma explicação simplista. Podia servir para muita gente, mas para mim não servia. As coisas nunca eram tão redondinhas assim.

            Anne Morrow Lindbergh, em seu clássico livro Presente do mar, faz um mergulho profundo na alma feminina e, entre outras preciosidades, afirma que “se é função da mulher se doar, ela também precisa ser reabastecida”. Nunca ouvi nada tão verdadeiro. Apesar disso, grande parte das mulheres, para não dizer a maioria esmagadora, não se permite. Se dedicam tempo a si mesmas, acabam se sentindo culpadas, como se estivessem roubando o tempo dos filhos ou da família.

            Em Um teto todo seu, Virginia Woolf também fala do espaço necessário à mulher para que possa conquistar o seu lugar no mundo. Porque não é pecado conquistar um lugar no mundo. E também não é pecado ter o seu próprio espaço. 

            Tudo isso é tão óbvio para mim: toda mulher precisa de espaço. E precisa de tempo sozinha. Para fazer o que quiser. Para fazer o que gosta. Pode ser uma atividade física, intelectual ou artística, não importa. É o oxigênio que nos abastece. Por que então as mulheres em geral acham isso tão errado? Por que carregam tanta culpa? Fiquei me perguntando se a explicação para certas atitudes radicais e imprevisíveis, como a de Lea, não estaria nessa necessidade represada, que, de repente, explode, de forma incontrolável. Mas, antes que eu chegasse a uma conclusão, Judite já tinha retomado a palavra.

             - É engraçado – ela começou a filosofar – alguns querem tanto ter filhos e não conseguem, já outros conseguem e não querem.

      - Como assim, Judite?

     - Veja a Carla, minha filha, por exemplo. Tentou engravidar durante anos e nada. Aí entrou na fila da adoção. Quando deu tudo certo, ela já estava com o bebê, descobriu que estava esperando gêmeos. A vida dela é um sufoco agora!

     - Mas ela está feliz pelo menos?

     - Pobre não é feliz, dona Tessa. Feliz é rico. A gente leva a vida.

            Lá vinha Judite, mais uma vez. A vida dela, às vezes, me fazia lembrar daquelas novelas mexicanas. Eu sempre dizia isso a mim mesma quando ela começava a ladainha. Mas, naquele dia, foi diferente. Sem qualquer traço de ironia, me perguntei se aquela atitude não era uma forma de eu “lavar as minhas mãos” com relação aos fatos da vida da minha diarista, evitando assim confrontar a dura realidade das periferias. Fiz uma anotação mental para pensar melhor sobre aquilo, já que precisava encerrar o assunto e correr para o escritório de Renato. Eu estava muito ansiosa para me encontrar com Iara, a mulher de quem eu esperava muitas explicações.

    Assim que me retirei, fiquei em dúvida se deveria ter dito a Judite que li um estudo recente que garante que não é possível encontrar a felicidade. Isso porque as pessoas felizes já nascem assim. A felicidade seria apenas produto da genética. Era uma forma de consolá-la. Contudo, concluí que o melhor foi não ter dito nada. Aquilo era uma grande bobagem. Não podia ser só isso!

            Cheguei ao escritório antes de Iara e dei uma lida rápida na petição que Renato havia preparado. Minutos depois, a secretária avisou que ela tinha chegado. Caminhei até a sala de reuniões e, finalmente, a mulher ganhou um rosto. De estatura mediana, clara, cabelos castanhos e traços delicados, nem magra nem gorda, Iara parecia apreensiva.

    - Iara, esta é a Tessa. Ela trabalha comigo – Renato nos apresentou.

    - Boa tarde, doutora.

    - Tessa – eu corrigi.

            Eu odiava (com todas as forças) essa reverência despropositada.

            Nós nos sentamos, e Renato passou a expor os argumentos com que fundamentara sua petição. Iara apenas balançava a cabeça, esperançosa. Ao final, olhou para mim, para se certificar de que eu teria algo a acrescentar. Eu não disse nada.

            Renato, então, se levantou e foi buscar um café para nós.

            Então, me senti mais à vontade.

    - Meu marido também congelou seu sêmen – eu disse a ela.

            Ela me encarou, surpresa.

    - Ele teve câncer nos testículos – expliquei.

    - E quando pretendem fazer a inseminação? - ela foi direta.

            Eu sorri, tristemente.

   - Este é o problema, Iara. Eu não quero ter filhos.

   - Não?!

   - Não.

   - Por quê?

   - Por vários motivos. É difícil explicar.

   - Por que não tenta?

            Nesse instante, Renato voltou com a bandeja de café.

            Conversamos mais um pouco, então nos despedimos. Saí do escritório junto com ela.

            Enquanto esperávamos o elevador, Iara sugeriu:

            - Por que não tomamos um café juntas? Algo me diz que você quer me fazer algumas perguntas.

            Ela era perspicaz.

            - Acertou em cheio! – confirmei.

            Saímos do prédio, atravessamos a rua e nos sentamos em uma cafeteria que ficava do outro lado.

            - Tessa, durante vários anos, eu também dizia que não teria filhos.

            - Sério?

            Ela confirmou com a cabeça.

            Por aquela, eu não esperava. A minha imaginação fértil já tinha concluído que ela era daquelas mulheres que diziam que tinham nascido para ser mães.

            - Sempre tive muito medo da maternidade. Mas, se me perguntassem, eu não saberia dizer o porquê. Demorei um bom tempo para perceber que tudo se resumia à minha necessidade absoluta de controle.

            Necessidade absoluta de controle? Por um momento, pareceu que ela estava falando de mim.

            - Descobri isso quando tive um ataque de pânico antes de embarcar em um voo para a Rússia. O Fred ia a trabalho, e eu ia acompanhá-lo. Perdemos o voo.

            Ela fez uma pausa.

            - Resolvi me tratar. E achei que seria algo bem específico. Mas o psiquiatra que me indicaram era bom e não deixou por menos. É incrível como, muitas vezes, o olhar do outro faz toda a diferença, não é? Pois bem, ele conseguiu me fazer enxergar que as coisas ficavam difíceis para mim quando eu descobria que não poderia controlar determinada situação. Foi o que aconteceu no aeroporto. E era o que acontecia em várias outras situações. Ele me fez uma pergunta direta: o que mais não estava fluindo na minha vida porque era uma situação em que eu tinha que dividir o controle ou deixá-lo com o outro? Fiquei semanas ruminando aquilo, e cheguei à conclusão de que a maternidade era uma dessas situações.

            - E aí você decidiu engravidar?

            - Não, não foi tão simples assim. Esses processos são lentos...

            Seus olhos marejaram.

            - Quando eu finalmente decidi, foi tarde demais. Fred se fora, como num piscar de olhos.

            - Lamento tanto, Iara – eu disse, com sinceridade.

            - Então, Tessa, não adie seus planos. O que tiver que fazer, faça logo.

            Lembrei de Anita dizendo: “Não dê chance ao azar”. No final das contas, era a mesma coisa.

            - Por que cargas d´água fui esperar tanto? É o que me pergunto todos os dias... – ela continuou.

            - Vai dar tudo certo, Iara. Você vai conseguir a autorização – eu não tinha tanta certeza, mas me sentia na obrigação de animá-la.

            - Não é tão simples assim, Tessa.  Ainda que o juiz libere o sêmen, terei uma via crucis pela frente. Fui à clínica de fertilidade na sexta. Conversei durante duas horas com o médico. De posse do material, faremos um ciclo de inseminação a partir da primeira menstruação. Como eu ovulo perfeitamente, ele vai induzir muito de leve – cinco comprimidos e duas injeções na barriga, que eu mesma aplicarei – para aumentar as chances, que, assim mesmo, são pequenas: 15%. Depois disso, terei que ir à clínica, dia sim, dia não, para fazer ultrassom e decidir o melhor dia para a inseminação – quando os folículos estiverem se soltando, ou alguma coisa assim.

            - Puxa, achei que fosse mais fácil...

            - Não é. Meu médico me deu um panorama bem realista da situação. Aliás, Tessa, ele é ótimo. Fica a dica, caso mude de ideia. O nome dele é Márcio. Ele é meio seco nas primeiras consultas, mas tem um humor refinado. Gostei dele de cara. Racional, pragmático, mas também hilário. Ele é muito estudioso e está muito empenhado na luta para que o governo arque com o custo dos tratamentos de fertilidade. Segundo ele, a saúde é física, mental e psíquica, mas o poder público para na física, e olhe lá. Não se preocupa com o dano emocional que uma maternidade frustrada pode causar, como depressão severa, que leva a baixa produtividade e a várias doenças, até à morte. Mas o que eu achei mais legal foi a constatação dele: rico e pobre não têm problema nenhum para ter filho, eles têm comportamento exatamente idêntico! Costumam ter filho na idade ideal, entre os 20 e os 25, quando os problemas de fertilidade são raros. O pobre, por falta de conhecimento, de precaução, porque não vai fazer faculdade, etc. O rico, porque casa cedo, com outro rico, não tem pressa de se formar na faculdade, não precisa batalhar a vida, entre outras razões, como ter suporte financeiro e babá 24 horas por dia. O grande problema é a classe média, ou seja, nós. Como podemos ter filhos nessa idade? Finalizando faculdade, correndo atrás do primeiro emprego? Depois temos que fazer uma pós-graduação, estudar para um concurso público, pagar contas, tentar se estabilizar financeiramente, comprar um imóvel e, só então, pensar em sustentar uma criança. Adiamos a maternidade, muitas vezes, não por opção, mas por falta de opção, e o governo não enxerga isso, não paga o tratamento, não subsidia. Ele me contou que, nos países europeus, o poder público paga de 6 a 10 FIVs por casal, porque reconhece os danos provocados pela não maternidade involuntária. Achei interessantíssima essa análise dele!

            - Interessante mesmo – concordei. Mas você precisa se animar, ficar mais otimista.

            Foi até engraçado dizer aquilo. Logo eu, que não era nada otimista.

            - Eu até tento, Tessa, mas aí me lembro de que o Fred não estará aqui para conhecer o filho.

            - Sim, ele não estará... A propósito, Iara, eu posso fazer uma pergunta íntima?

            - Pode.

            - Por que engravidar de um homem que já morreu? Você é nova. Ainda pode conhecer alguém...

Ela me cortou.

   - Eu quero um filho dele, Tessa. DELE. Do Fred. Não de outro homem.

Não foi preciso dizer mais nada. Eu entendi o recado.


---------------------------------------------------------------------------------

            A conversa com Iara mexeu comigo profundamente. Não consegui me concentrar em nada naquele dia e, à noite, já deitada e com as luzes apagadas, eu ainda pensava na tal necessidade absoluta de controle que eu sabia que tinha. Era isso que me impedia de engravidar? Eu dizia que eram as dificuldades que me desanimavam, mas será que, no fundo, era porque eu queria controlar tudo, cada partezinha, sem deixar nada para o improviso, para o acaso?

            Certa vez, Inácio dissera que eu deveria me mudar para um bunker, tamanha era a minha necessidade de manter o controle sobre tudo, o que, na opinião dele, era impossível e extremamente estressante. Acrescentou também que não viveria comigo lá. Na época, tudo pareceu uma brincadeira, mas agora eu me perguntava se não era o que estava acontecendo.

            Nossa, eu sentia tanta falta dele! Sentia falta de coisas bobas, que até me irritavam, como a mania dele de se enxugar com a minha toalha após o banho.

            Fiquei um bom tempo recordando detalhes da nossa convivência e, de repente, eu estava revivendo a véspera da primeira cirurgia para remoção dos testículos de Inácio. Aquela era uma lembrança dolorosa, mas, por alguma razão, me veio à mente naquele momento.

            Era 24 de outubro. Rodrigo, o cirurgião oncológico, gostava de operar logo cedo. Assim, internou Inácio na véspera da data agendada para o procedimento, a fim de iniciar os preparos.

            Eu estava muito nervosa. Ainda não tínhamos certeza de que o tumor não havia se espalhado para outras regiões vitais. Apenas no dia seguinte teríamos essa resposta. O termo metastático me assombrava. Contudo, de forma inexplicável, Inácio se mantinha sereno e equilibrado. Quase me consolando.

            Às oito da noite, Rodrigo passou no quarto, fez as últimas recomendações e nos desejou uma boa noite de sono. Como se fosse possível!

            - Durma bem também, meu chapa! – Inácio brincou. Conto com você amanhã.

            - Fica tranquilo, véi! – Rodrigo respondeu, no mesmo tom.

            Achei incrível que Inácio pudesse brincar num momento tão tenso. Mas, contrariando as minhas expectativas, ele estava ali, inteiro, forte e equilibrado. Como ele conseguia?

            Tive muita dificuldade para dormir. Me revirei no sofá-cama durante horas, até ser atingida em cheio pela exaustão. Apesar disso, lembro com nitidez de Inácio se levantando da cama hospitalar, pé ante pé, para me cobrir. A noite estava fria, e eu estava apenas parcialmente coberta. Ainda sonolenta, pensei: que homem é este? Era eu que deveria estar cuidando dele, não o contrário.

            No dia seguinte, às seis da manhã, com uma valentia surpreendente, ele se levantou e caminhou até o bloco cirúrgico, como quem vai à padaria. Quase pedi uma cadeira de rodas para mim. Minhas pernas tremiam descontroladamente.

            - Me devolve ele inteiro, Rodrigo. Preciso dele – eu disse, antes de as portas duplas do centro cirúrgico se fecharem.

            Rodrigo fez um sinal positivo com os dedos e deu uma piscadinha.

            Então, entendi porque aquelas cenas me vieram à mente - cenas que evocavam em mim uma profunda admiração por Inácio.

            É claro que eu podia entender Iara. Quero um filho DELE fazia todo sentido para mim. Fred, o marido dela, não devia ser um homem qualquer, assim como Inácio também não era. E, num mundo repleto de exemplos duvidosos, eles sobressaíam.

            Sempre aleguei que seria crueldade colocar um filho nesse mundo tresloucado, mas será que o correto não era pensar o contrário? Inácio era um homem que se destacava, um espécime raro. Um filho seu certamente seria uma boa semente. Teria grandes chances de fazer diferença em um mundo que clamava por homens melhores.

            Sendo assim, eu deveria estar correndo em direção às suas sementinhas. Por que então estava correndo delas?


             
            O capítulo 13 será publicado na  segunda-feira, dia 25 de novembro.

Cadastre-se no blog para receber as atualizações semanais.


Texto: Cynthia França

Revisão: Arilma Peixoto

Colaboração: Adriano Machado, Anita Lima, Gustavo França, Juliana Domingues, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira

Nenhum comentário:

Postar um comentário