Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CAPÍTULO 7


Duas coisas afetaram a minha visão de mundo. Uma foi o abandono de minha mãe. A outra, a doença e a morte prematura de meu pai.

Por isso, quando escutava algumas mulheres dizendo que “nasceram para ser mães”, eu duvidava. Achava que nascer não era bem o caso. Havia um milhão de fatores ao longo da vida que podiam influenciar a escolha.

Imagine, por exemplo, nascer em uma família como a da jornalista norte-americana Jeannette Walls, autora de O Castelo de Vidro, relato autobiográfico triste e sincero, no qual desnuda completamente a história de sua família. Rex Walls, seu pai, era um gênio autodidata, ateu, charmoso, inescrupuloso e alcóolatra. Rose Mary Walls, a mãe, era uma artista excêntrica, que se preocupava mais com a sua “arte” do que com as necessidades básicas dos quatro filhos. Aos 3 anos de idade, Jeannette sofreu graves queimaduras ao tentar cozinhar salsichas para si mesma, já que sua mãe estava pintando e não podia se ocupar do almoço das crianças.

Embora eu nunca tenha lido nada a respeito, podia apostar que Jeannette não teve filhos por opção. Há marcas que nos acompanham por toda a vida, e a sensação de ter sido apenas uma nota de rodapé na vida dos próprios pais, sem dúvida, é uma delas.

Enquanto alguns sofrem com a ausência e o descaso, existem aqueles que vivenciam o contrário. Passei grande parte da vida acreditando que o abandono e suas variantes eram os únicos responsáveis pelos traumas na infância. Mudei de opinião quando conheci Marina, uma relações públicas simpática, que trabalhava na mesma instituição que eu. Aos 35 anos, em seu segundo casamento, era sempre questionada a respeito dos herdeiros. Certo dia, almoçamos juntas e ela me contou sua história. Tivera uma mãe superprotetora, daquele tipo que sufoca. Não aprendeu a se virar sozinha nem a tomar decisões. Seu primeiro marido, quem escolheu foi a mãe. Obviamente, não deu certo. O relacionamento já nasceu fadado ao fracasso. E ela acabou se apaixonando por um colega de trabalho, que a matriarca não aprovava. Pela primeira vez na vida, resolveu ir em frente com um projeto seu, sem o aval materno, o que causou uma fissura irreparável na relação mãe e filha.

Marina nunca quis ser mãe. “Não entendo o que leva uma mulher a querer ter filhos”, ela dizia. Para sua alegria e satisfação, o segundo marido também não queria, e até já tinha providenciado uma vasectomia. Combinação perfeita.

Em uma de nossas conversas, sentindo-se à vontade por compartilharmos a mesma opinião, Marina me confidenciou que sentia pânico de engravidar do primeiro marido. Além da razão declarada, havia outra, que ela não contava para todo mundo.

- Tinha muito medo de engravidar dele, porque as pessoas de sua família são muito feias. Muito mesmo, Tessa. Inclusive ele. Já pensou ter um filho ogro?

Dei uma risada sonora. Se Inácio escutasse aquilo, rotularia Marina de fútil, mas eu não era tão radical. Nunca tive uma postura tão politicamente correta como a dele. Algumas atitudes faziam sentido para mim, embora causassem estranhamento aos outros.

- Você ri, não é? Mas o que eu disse foi profundo. Eu tinha pesadelos com um ogrinho e pensava muito no bullying que ele sofreria na escola. As crianças são cruéis...

Que o diga Michel Houellebecq, para quem “a criança é uma espécie de anão cheio de vícios e com uma crueldade inata”.

Exageros à parte, o argumento de Marina era bom e viria a calhar, caso Inácio não fosse um gato. Bullying era coisa séria.

Ok, estou brincando!

O que interessa é que, em minha conversa com Marina, recordei-me de que, aos 11 anos, já havia escrito em meu diário: “Nunca quero ter filhos”. Àquela altura, meu querido pai, que criava suas duas filhas sozinho, já pagava um preço alto pela empreitada – a doença já dava seus primeiros sinais, o que sempre considerei uma resposta física à dor da alma.

Acho que já deixei bem claro que foi meu pai quem acompanhou a minha infância, a minha adolescência e o início da minha vida adulta. Ele me ensinou quase tudo o que sei. Dissipou meus medos, acalentou minha alma, consolou-me com chás de erva-cidreira. Fez o melhor que pôde, não tenho dúvida. E jamais cedeu à amargura ou ao ressentimento. Contudo, ficou doente. Muito doente. Acabou morrendo. Nunca consegui relativizar o peso dessa culpa.

Por tudo isso, a chance de eu querer repetir a história de minha família era mínima. Ao lado de Jeannette, Marina e outras anônimas, eu engrossava as estatísticas. Reconheço: mudei radicalmente de opinião – passei a aceitar que tanto a ausência quanto o excesso podiam ser nocivos. Mas não havia mudado meu posicionamento com relação ao ponto mais importante: a maternidade, ou melhor, a não maternidade, no meu caso.

A despeito disso, eu reconhecia que Inácio era corajoso. Tentar convencer uma mulher com o meu histórico e a minha carga familiar a ter filhos (ou, até mesmo, a ter um único filho) era um objetivo ambicioso. Seria mais simples ele pleitear uma viagem à Lua.

 

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O que faz o coração bater?

 
Enviei uma mensagem a Inácio.

A resposta chegou alguns minutos depois.

 
O seu, sou eu.

 
Sorri ao olhar para a tela. Apesar de tudo, era verdade.


É sério, Inácio. É para a Patrícia.


Patrícia era uma colega de trabalho.

 
Para um parecer?


Para o filho dela. Pesquisa escolar.


Qual a idade dele?


6

 
Ok. Deixa eu ver... Simplificando: são células localizadas no átrio direito, que emitem impulsos elétricos – o marca-passo natural do coração.


Muito obrigada, lindão! Beijos!


Quem é o médico mais fodástico que você conhece?


Fodástico??? Kkkkkkkk
       Não sei o que é isso... Defina, por favor!


Bonito, charmoso, inteligente...


Ah, entendi! Dr. House?

 
Engraçadinha...
Falando sério, Tessa: convidei o Alexandre para jantar conosco hoje.


Alexandre arquiteto?


Isso.


Nem vou perguntar por quê.


Ótimo. Às oito, está bem?

 
Bem não era a palavra mais apropriada. Contudo, naquele momento, me concentrei em planejar o cardápio para o jantar. Cogitei um salmão ao molho de cianureto. Mas logo desisti. Alexandre era uma ótima companhia. Simpático e divertido. Seria um desperdício. Além disso, eu amava Inácio mais do que considerava prudente naquele momento.

 

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- Tessa, este salmão está divino – Alexandre elogiou.

Salmão ao molho de alcaparras, antes que você se pergunte.

- Minha esposinha é uma cozinheira de mão-cheia – Inácio completou.

- A minha, não – Alexandre riu.

- E como está a Dani, Xande? - eu perguntei.

Para mim, foi um alívio quando Inácio avisou que Alexandre iria ao jantar sozinho. Daniela não me assustava, mas o bebê deles, sim. Há oito meses, quando nasceu, eu e Inácio fomos visitá-los em casa. A sensação que tive foi a de entrar em um trem fantasma. Um susto após o outro.

Enzo, aquele bebê minúsculo e cor-de-rosa (meio arroxeado), com o umbigo pendurado, sugando avidamente o seio da mãe me causou arrepios. Mas o clímax aconteceu quando Daniela abriu sua fralda para trocá-lo. Eu não queria ter presenciado aquela cena. O pintinho, que parecia adormecido, entrou em ação subitamente, causando um estrago. Xixi na parede e em nós. Em seguida, jatos de cocô. Isso mesmo: jatos! Nunca vi nada igual. Que potencial tinham os bebês!

Saí do quarto apavorada, e Inácio percebeu, tanto que sugeriu que fôssemos embora, alegando que as visitas a recém-nascidos deviam ser breves.

Antes do episódio traumático, enquanto Daniela amamentava aquela bomba-relógio no quarto, perguntei a ela:

- Você sempre quis ser mãe?

- Não – ela me surpreendeu.

- O que te fez mudar de ideia? - continuei, mais curiosa que nunca.

- O Xande sempre quis. Homens... - sorriu. Ficam só com a parte boa – e deu uma piscadinha.

Continuei encarando o cocuruto do bebê e os seios encharcados de leite da Daniela, enquanto ela prosseguia:

- Sou muito pragmática, Tessa. De repente, pensei: chegou a hora. Estou com 32 anos, meu marido quer filhos, não quero ter câncer de mama, então decidi.

- Espera aí, que história é essa de câncer de mama?

- Amamentar diminui os riscos, você não sabia? E eu tenho histórico familiar.

- Mas foi só por isso? - achava difícil acreditar.

- Por tudo isso. Eu me casei com o Xande, ele fazia questão de ter filhos, estava na minha hora, então deixei rolar.

- E agora?

- Estou exausta, não vou mentir para você. Sem dormir direito, produzindo leite em abundância, flácida, esquisita e melancólica, mas não me arrependo.

- Você está feliz?

- Sim, estou. E com a sensação de dever cumprido, também.

Saí de lá confusa.

Já fazia oito meses que Enzo tinha nascido, e Daniela continuava muito envolvida nos cuidados com ele. Mal saía de casa, exceto para os compromissos do próprio bebê – pediatra, vacinas, etc. Não tinha mais convívio social, exceto com outras mães na mesma condição. Se me tivessem dito que fora abduzida, eu acreditaria, pois nunca a via. Segundo Alexandre, ela passara a fazer parte de um grupo de mães cujo contato era virtual, com o objetivo de esclarecer dúvidas e prestar ajuda mútua. Meu Deus, que tédio! - eu pensava.

Por essas razões, ela não estava ali naquela noite. Mas o marido dela estava. Rindo, conversando e entornando várias taças de vinho. Usufruindo o “vale-night”, que era exclusividade dele. Sua esposa não fazia jus a um.

- Conheci o novo vizinho de vocês – ele interrompeu meus devaneios.

- O luthier? - Inácio perguntou, curioso.

- O nome dele é Daniel – ele informou. Um sujeito reservado, mas simpático. Disse maravilhas sobre a região. A única ressalva que fez foi a umidade alta, que lhe causa alguns problemas de mofo no chalé. Acho que aquele riacho é o responsável. De qualquer modo, vou estudar uma forma de minimizar o problema na casa de vocês.

Alexandre não trabalhava mais com projetos residenciais e só aceitou encabeçar as reformas na Vila Mariana – detalhes que eu e Inácio queríamos mudar -, por causa de sua amizade com o meu marido. Seu negócio passara a ser o “design universal”, ou seja, a formulação ou reestruturação de ambientes para que fossem usáveis pelo maior número possível de pessoas, independentemente de idade, habilidade ou situação. Eu achava aquilo muito interessante e sempre fazia perguntas sobre os projetos. Parei no dia em que ele decidiu me falar sobre os desafios na maternidade de mães cadeirantes. Me senti fútil e egoísta e resolvi que não queria saber mais nada sobre design inclusivo.

Contudo, naquela noite, depois de muito vinho, a conversa tomou um rumo inesperado. Nada de design que inclui, mas de maternidade, assunto que eu evitava ao máximo. Não sei bem por que, mas, de repente, Alexandre estava nos contando sobre sua prima Gabriela, que também era arquiteta e – surpresa! - não queria ter filhos.

- Por que não? - eu perguntei.

- Tenho uma teoria, Tessa. Acredito que sua recusa tem relação com o fato de ter perdido a irmã mais velha, há alguns anos, em um trágico acidente de carro.

Confesso que não entendi o que uma coisa tinha a ver com a outra e imaginei que aquela era mais uma das viagens intergalácticas de Alexandre. Mas aí ele explicou, e tudo passou a fazer sentido. Muito sentido, aliás.

Anna, tia de Alexandre, teve três filhas: Amanda, Gabriela e Sofia. Amanda, a mais velha, cursava Medicina, namorava um colega de classe, era bonita e inteligente e, por negligência de um motorista alcoolizado, morreu, aos 21 anos, entre as ferragens de seu veículo. Foi um choque terrível para a família. Os pais nunca mais se recuperaram. Anna teve depressão profunda e, desde então, vivia recolhida e medicada.

Embora nunca tenha falado sobre o assunto abertamente, Alexandre tinha certeza de que Gabriela nunca se recuperou da tragédia. E decidiu que não ia correr o risco de vivenciar a dor excruciante experimentada pelos pais.

- Acho que ela pensa assim: não vou correr o risco de sofrer horrores por alguns momentos de felicidade.

- Será, cara? - Inácio parecia cético.

- Sim, aposto todas as minhas fichas. Mas, como é uma questão muito delicada, não ouso interferir.

- Delicadíssima – eu me intrometi. Ninguém tem condição de julgá-la.

Inácio me olhou de soslaio. Então, disse:

- Bom, pessoal, eu acho que não podemos prever todos os desdobramentos da vida. Em algumas situações, devemos simplesmente arriscar. Respeito o luto dessa moça. Mas acredito que existem, sim, experiências que, ainda que fugazes, momentâneas ou temporárias, são válidas. Valem o risco.

Ponto final. Nem eu nem Alexandre ousamos discordar.

 

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As palavras de Inácio não me saíram da mente. Eu sentia muito medo desses instantes que valiam a pena. Que faziam valer toda a vida, como ele disse certa vez.

Não fazia muito tempo eu tinha lido um livro que me marcou profundamente:  A luz entre oceanos, romance de estreia da australiana M. L. Stedman. Um diálogo entre o casal protagonista não despregava de mim, desde então.

 

Ela segurava o galho de madressilva, afagando as flores distraidamente. Tom arrancou uma das flores sedosas do galho.

- Nós costumávamos comer isso, quando éramos pequenos. Você também?

- Comê-las?

Ele mordeu a ponta estreita da flor e sugou a gota de néctar de sua base.

- Você sente o gosto por um segundo. Mas vale a pena.

 

Era um ponto de vista intrigante. E corajoso. Mas eu não era corajosa. Sabia bem onde me doíam os calos. Não tinha disposição de ânimo para me arriscar. Nem um milímetro. A minha cota de sofrimento era considerável, e eu não estava disposta a ampliá-la. O que eu sabia fazer com maestria era me defender e pretendia continuar assim. Pelo meu próprio bem.

Entendi o drama de Gabriela como se fosse o meu. E isso só reforçava o meu ponto de vista: não nascemos predestinados a ser algo; é muito mais complexo que isso. Elisa Lucinda já dissera que “na grande palma da mão do mundo, as linhas de vários destinos e caminhos não cansam de se cruzar”.

Aquela conversa regada a vinho serviu de catalisador para algo que estava querendo saltar de dentro de mim.

Não dava mais para adiar. Eu precisava ser honesta comigo mesma e com Inácio. Não podia permitir que a situação se prolongasse indefinidamente. Não era justo com nenhum de nós. Eu sabia também que não dava para fugir dos problemas, eles acabavam nos alcançando. Tinha chegado a hora de colocar as cartas na mesa. E decidir o nosso futuro. Ou a ausência dele.

 

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Eu não tinha como saber qual ponto de vista era o correto, e talvez ambos o fossem. O que eu precisava era dizer a Inácio como me sentia. Não podíamos continuar fingindo que estava tudo bem. Ele queria se arriscar, achava que valia a pena. Eu não.

Quando era bem jovem, li o que escreveu Minou Drouet:

“Para fazer um pêssego, é preciso um inverno, uma primavera, um verão, um outono e uma abelha, muitas noites e muitos dias, e sol e chuva, pétalas rosadas com pólen – tudo para que tua boca possa conhecer uns poucos minutos de prazer.”

Para muitos, poderia ser tentador. Mas, para mim, não era.

Não demorei a perceber que precisava de Corinne Maier, mais do que nunca. Dela e de seu ensaio antimaternidade. Aquelas linhas sempre me animavam e me convenciam de que eu estava no caminho certo.

O confronto com Inácio não seria fácil. Eu já podia nos ver como dois gladiadores em pleno Coliseu. Precisaria de ótimos argumentos a fim de fazê-lo voltar à razão. Puxa vida, antes ele não fazia questão! Por que, de uma hora para outra, resolvera mudar de ideia?

Era o momento ideal para provar que eu era uma boa advogada. Que o curso de Direito tinha servido para alguma coisa.

Decidi então montar um dossiê com todos os contras da maternidade e da paternidade. Nada de prós, é óbvio. Inácio teria de reconhecer que eu tinha razão.

O grande problema era que ele era duro na queda. Eu teria que me superar daquela vez.

- Para uma mulher culta, você se deixa enganar muito facilmente, Tessa – ele dissera, certa vez, a respeito de Corinne Maier, que, segundo ele, não passava de uma fraude.

            Na opinião de Inácio, Corinne não acreditava em nada daquilo. Era mãe de dois filhos e só escreveu o livro para se promover. Sua intenção era contrariar, chocar, dizer o oposto do que a maioria estava acostumada a ouvir e a fazer, simplesmente porque aquilo vendia.

            Confesso que já havia pensado nisso. Ao contrário do que supunha Inácio, eu não me deixava enganar tão facilmente assim. Mas, independente de suas motivações, eu achava que os argumentos eram bons e faziam sentido, e era isso que importava.

            - Você gosta da irreverência dela, Tessa. Convém se perguntar por quê – ele disse.

            Um breve parêntese para dizer que eu odiava quando Inácio fazia isso. Um ortopedista me analisando era o fim da picada.

            - Vai falar sobre o meu complexo de castração também? – respondi, irônica.

            O fato é que tirei o livro de Corinne da gaveta. Sem filhos – 40 razões para você não ter, um texto provocador, segundo o Le Figaro. Poderia ser meu livro de cabeceira se eu não fosse casada com o novo Inácio, que entenderia aquilo como uma ofensa pessoal. Para evitar conflitos, ele foi para a primeira gaveta, onde podia acessá-lo facilmente.

            Psicanalista e economista, formada em relações internacionais e economia pelo Institut d´Etudes Politiques de Paris, Corinne se cansou dos pensamentos conformistas que conclamavam mulheres e homens às alegrias da maternidade e da paternidade e resolveu rasgar o verbo. Revelou, sem dourar a pílula, excelentes razões para não sucumbir à tentação e enfrentar as consequências e os sacrifícios que essa trágica escolha pode acarretar. Jogou por terra a onda de idealização e glamourização onipresente na mídia contemporânea e pôs em xeque um dos tabus mais intocáveis da sociedade: a maternidade.

            Pontos para ela!

            Fato é que, mesmo entre os homens, por quem a opção de não ter filhos é mais aceita, assumir isso é um risco. Para as mulheres, essa escolha é acompanhada de reprovação e condenação: é impossível alcançar a plenitude sem filhos – o argumento mais comum. Isso para não dizer que é uma atitude pra lá de suspeita.

            Corinne Maier, meu oráculo, mostra também como a educação dos filhos se tornou um sacerdócio, já que a sociedade passou a exigir dos pais performances compatíveis aos do Super-Homem e da Mulher-Maravilha – sempre disponíveis, sorridentes, atentos, pedagógicos e responsáveis, ou seja, com uma conduta humanamente impossível. Sem mencionar o indispensável sacrifício do restante – vida conjugal, sexual, lazer, amigos, sucesso profissional.

            Fortalecida pela leitura, comecei a enumerar as razões para não ter filhos e fiz um breve resumo de cada uma delas para entregar a Inácio. Digitei tudo, imprimi e coloquei em um envelope, como se fosse um pedido de habeas corpus, o que, de certo modo, era.

            Então fui correr no parque, satisfeita comigo mesma. Ao passar pela área de lazer, uma cena me veio à mente. Há dois meses, estivera ali com Inácio. Corremos juntos e, em seguida, paramos para tomar uma água de coco. Uma garotinha, de uns 7 anos, que estava no balanço, pediu a Inácio que a empurrasse. Ele adorou a ideia e engrenou um longo papo com a menina. Joana era o nome dela, não me esqueci. Fiquei observando a cena: ele empurrando, ela sorrindo e falando. Então, exasperada, percebi que estava com ciúmes. Isso mesmo: ciúmes! Da atenção e devoção que Inácio estava dispensando à garota. Aquilo me fez pensar que, se tivéssemos um filho ou uma filha, seria muito pior. Eu não suportaria. Naturalmente, me senti um monstro.

            Dizem que é difícil saber o momento em que você se apaixona por alguém, mas, com Inácio, eu soube assim que aconteceu. E não estava disposta a dividir seu amor com ninguém. Escandalosamente egoísta? Pode ser. Mas eu sabia que não seria capaz.

            E sabia também que era meio neurótica. Lembrei de Janaína, uma colega de faculdade que engravidou durante o curso, dizendo “quando o bebê passou a dormir a noite inteira, eu acordava a cada duas horas para checar os sinais vitais”. Inácio garantia que cuidaria do bebê à noite, numa tentativa desesperada de me convencer. Mas isso não daria certo, por uma razão simples: eu não teria sossego. Ficava maluca quando Bela adoecia. Quase surtei quando Luna se machucou. Como seria com um filho? Eu teria um colapso nervoso.

            Não, eu não podia ter filhos. Não estava preparada para isso. “Nada de criança, obrigada”, nas palavras de Corinne Maier.

            Em síntese: NÃO VALIA A PENA!

            Algo que doía mais do que confortava não podia valer a pena.

 

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           Inácio mal cruzou a porta, eu o chamei para conversar. Ele deixou sua pasta no escritório e se dirigiu ao quarto.

            Entreguei a ele o envelope. Estava firme por fora, mas tremendo horrores por dentro.

            Ele retirou as folhas impressas, colocou os óculos e leu com calma. Observei sua expressão, tentando adivinhar seu estado de espírito, mas ele permaneceu impenetrável. Assim que terminou, tirou os óculos e perguntou:

            - O que isso quer dizer?

            O óbvio, pensei em responder, mas me contive.

            Ultimamente, as mulheres e suas cartas bombásticas deviam estar assustando Inácio...

            - Você me pediu para pensar sobre o assunto, e eu pensei.

            - E?

            - Esta é a minha resposta. Não posso ter filhos. Não quero ter filhos. E não vou ter.

            Ele me olhou por um longo tempo. Foi aflitivo! Seu olhar era triste e penetrante.

            - Você tem certeza, Tessa? É sua decisão final?

            - Sim, é minha decisão final. Não tenho nenhuma dúvida.

            Ele esfregou os olhos, correu a mão pelos cabelos e, por fim, disse:

            - Então, Tessa, nós temos um problema.

            Dito isso, levantou-se, pegou as chaves do carro e saiu, sem se despedir. Ouvi quando ele retornou às 3 da madrugada. Fingi que estava dormindo.

 

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Eu estava negligenciando o que havia de mais importante na minha vida: o amor por Inácio e a formação de uma família com ele?

            Esse pensamento me assaltou na manhã seguinte, enquanto eu tomava o café da manhã.

            Será que eu estava tão equivocada assim?

            Não, não estou – eu tentava me convencer – Isso pode servir para outras pessoas, mas não serve para mim. Fazer como todo mundo costuma confortar, mas é incrivelmente banal. Eu não podia cair nessa cilada. Não podia me transformar em uma caricatura. Ter um filho é uma possibilidade, e apenas isso. Não é obrigação.

            E, convenhamos, ser mãe nos dias de hoje é um passaporte para a loucura. Antigamente, a maioria das mulheres não trabalhava fora do lar – dedicavam-se integralmente aos filhos e eram absolutamente frustradas pelo vazio de sua existência. Como diria Corinne Maier, “cansaço crônico, solidão, insatisfação, excessos à mesa e interesse obsessivo pelos filhos: geralmente gordas e tensas dentro de roupas de baixo desconfortáveis”. Os tempos mudaram. Agora, as mulheres trabalham fora, mas – fazem questão de deixar bem claro – por razões econômicas e porque o antigo modelo não levava à plenitude. A principal preocupação da nova mãe continua sendo a prole, ninguém ouse afirmar o contrário. Sempre repetem que os filhos vêm em primeiro lugar. Ocorre que, na prática, ela se sente uma péssima mãe e carrega uma culpa descomunal. Sim, porque o simples fato de pôr um filho no mundo é uma fonte de culpa terrível. Dar à luz um ser humano, ser responsável por ele é algo muito pesado de se carregar. Assim, as mães modernas sentem que nunca fazem o bastante, que não cuidam direito dos filhos, que não estão suficientemente disponíveis e por aí vai. “Ficam presas entre a marreta do trabalho doméstico e a bigorna do assalariado”, resume Corrine Maier. A mulher “sente-se culpada. Culpada de voltar extenuada do trabalho, culpada de não entoar a canção de ninar à noite, culpada de ter uma crise de nervos após duas horas de berreiro, culpada de se sentir aliviada ao deixar as crianças na creche pela manhã, culpada de se sentir feliz quando elas partem em uma excursão da escola”. Estou fora!

            Desejar um filho: o que significa? Deixemos a hipocrisia de lado. Eu não suportava quando as pessoas diziam “não desejo nada em troca”. Mentira. A gente sempre está esperando alguma coisa. E, às vezes, as expectativas são grandes. A psicanálise ensina que nada é mais destrutivo do que querer o bem de alguém, porque, no fundo, o que se quer é o próprio bem, projetado no do outro. Além disso, um dia, você vai querer ser pago pelo bem que impôs. Em outras palavras, nenhum pai ou mãe está à altura de tudo o que projeta para seus descendentes. A propósito, Freud deu a seguinte resposta a Marie Bonaparte, que lhe pediu conselhos para a criação dos filhos: “Faça como quiser, de qualquer maneira estará errado”. Quem era eu para discutir com Freud?

            Há décadas, os filhos eram encarados como uma fatalidade. Bem feiosa por um lado, mas com a vantagem de livrar os pais de uma responsabilidade pesada demais. Hoje, a opção mudou tudo. A tendência é se preocupar mais e superproteger o filho que se quis ter.

            Estava tão absorta nesses pensamentos que não notei a aproximação de Inácio. Ele atirou as folhas do dossiê em cima da mesa. Levantei os olhos, surpresa.

            - Você tem noção do quanto é difícil te amar, Tessa?

            Por essa, eu não esperava.

            Mas fiz que sim com a cabeça. Eu tinha.

            - Nada disso – apontou os papéis – é o cerne da questão. São bobagens escritas por uma lunática interessada em se promover. O que realmente te impede de ter filhos é o fato de querer ter o controle total da sua vida, minimizando ao máximo os riscos. Ok, você leva uma vida asséptica; dentro do possível, evita sofrimentos. Sem riscos, mas sem emoções também. Não vale a pena, Tessa, acredite em mim. Viver dói, sim, mas não viver dói ainda mais. Não sou eu que estou dizendo, é a Leila Ferreira, a quem você costuma ouvir. Essa, sim, uma pessoa sensata.

            Ele fez uma pausa.

            - Você não pode controlar tudo. Além de impossível, a vida fica sem graça, sem cores. Para ser feliz, a gente tem que se arriscar.

 

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A semana foi tensa. Eu já tinha dito, com todas as letras, que não estava disposta a ser mãe. Inácio afirmou que, nessas circunstâncias, tínhamos um problema. Mas não tinha feito nada a respeito até aquele momento.

            A reforma da Vila Mariana estava a todo vapor. Alheio ao stress doméstico, Alexandre estava empolgadíssimo com o projeto. Além das alterações estruturais, tínhamos dado a ele carta branca com relação à decoração. Ele nos apresentou um layout, que aprovamos, e partiu para a escolha e a compra dos móveis. Era um luxo ter alguém tão gabaritado cuidando de nossa casa de campo, mas nenhum de nós estava desfrutando disso.

            Na quinta-feira, saí mais cedo do trabalho e resolvi ir à clínica. Pensei em convidar Inácio para irmos ao cinema. Estacionei na garagem e vi que seu carro estava lá. Mas fiquei surpresa quando Jane, a recepcionista, informou que ele já tinha ido embora.

            - O último paciente desmarcou, e o Dr. Inácio saiu mais cedo.

            Achei estranho e resolvi dar uma volta no quarteirão. Quem sabe ele tinha ido à farmácia?

            Não considerei a recomendação de Mônica, uma dermatologista amiga de Inácio: “Nunca faça surpresas; a surpresa pode ser sua”.

            Assim que contornei a esquina, avistei Inácio sentado em um empório, naquele mesmo quarteirão. Era um lugar agradável e, às vezes, íamos lá. Ele estava sozinho, com um copo de chope diante de si e a expressão indecifrável. Tive a impressão de que estava bem longe dali.

            Fiquei parada onde estava, observando a cena. Sentado àquela mesa, meu marido tinha o olhar triste e sua perplexidade silenciosa partiu meu coração. Decidi que não arredaria pé de lá até ter certeza de que ele não estava esperando por alguém.

            Quarenta minutos se passaram. Ele beliscou algumas bruschetas e, por fim, pediu a conta. Então, me apressei em ir embora. Tirei o carro da garagem antes que ele me visse.

            Estava tudo errado. Ao invés de ir para casa, Inácio preferiu se sentar a uma mesa em um local público e tomar um chope sozinho. Ficou óbvio que queria pensar. Mas em quê? Qual era a decisão que estava inclinado a tomar?

            Liguei para Anita. Precisava desabafar com alguém.

            - Vocês se amam. Vão superar isso – ela disse, assim que relatei os últimos acontecimentos.

            - Não é tão simples assim.

            - Calma, Tessa.

            - Me diz uma coisa: como sabemos quando o casamento acabou?

            - Ah, não, Tessa! Não é para tanto...

            - É sim, Anita. Ele está diferente, distante. Não me surpreenderia se amanhã ele pedisse o divórcio.

            - Bom, acho que um casamento acabou quando não rola sexo há anos.

            - Não é o nosso caso.

            - Está vendo?

            - O que mais?

            - Ah, sei lá. Quando ele não te deseja mais.

            - Ele me deseja, sei disso.

            - Quando acaba o respeito.

            - Acho que ainda não chegamos a esse ponto.

            - Quando acaba a admiração pelo outro, aquela que um dia encheu os olhos.

            - Ainda admiro o Inácio, e acho que ele me admira, apesar de tudo.

            - Quando não existe mais diálogo entre o casal.

            Bingo!

            Esse último me assustou.

            - O que foi, Tessa?

            - Talvez não exista mais diálogo entre nós.

            - Não diga isso. Faça alguma coisa, então.

            - Não depende mais de mim. Já disse o que pensava. A decisão está nas mãos dele agora.

 

 

            O capítulo 8 será publicado na quarta-feira, dia 6 de novembro.

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            Texto: Cynthia França

            Revisão: Arilma Peixoto

            Colaboração: Adriano Machado, Ana Carolina Chaves, Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira.

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