Duas
coisas afetaram a minha visão de mundo. Uma foi o abandono de minha mãe. A
outra, a doença e a morte prematura de meu pai.
Por
isso, quando escutava algumas mulheres dizendo que “nasceram para ser mães”, eu
duvidava. Achava que nascer não era bem o caso. Havia um milhão de fatores ao
longo da vida que podiam influenciar a escolha.
Imagine,
por exemplo, nascer em uma família como a da jornalista norte-americana
Jeannette Walls, autora de O Castelo de Vidro, relato autobiográfico
triste e sincero, no qual desnuda completamente a história de sua família. Rex
Walls, seu pai, era um gênio autodidata, ateu, charmoso, inescrupuloso e
alcóolatra. Rose Mary Walls, a mãe, era uma artista excêntrica, que se preocupava
mais com a sua “arte” do que com as necessidades básicas dos quatro filhos. Aos
3 anos de idade, Jeannette sofreu graves queimaduras ao tentar cozinhar
salsichas para si mesma, já que sua mãe estava pintando e não podia se ocupar
do almoço das crianças.
Embora
eu nunca tenha lido nada a respeito, podia apostar que Jeannette não teve
filhos por opção. Há marcas que nos acompanham por toda a vida, e a sensação de
ter sido apenas uma nota de rodapé na vida dos próprios pais, sem dúvida, é uma
delas.
Enquanto
alguns sofrem com a ausência e o descaso, existem aqueles que vivenciam o
contrário. Passei grande parte da vida acreditando que o abandono e suas
variantes eram os únicos responsáveis pelos traumas na infância. Mudei de
opinião quando conheci Marina, uma relações públicas simpática, que trabalhava
na mesma instituição que eu. Aos 35 anos, em seu segundo casamento, era sempre
questionada a respeito dos herdeiros. Certo dia, almoçamos juntas e ela me
contou sua história. Tivera uma mãe superprotetora, daquele tipo que sufoca.
Não aprendeu a se virar sozinha nem a tomar decisões. Seu primeiro marido, quem
escolheu foi a mãe. Obviamente, não deu certo. O relacionamento já nasceu
fadado ao fracasso. E ela acabou se apaixonando por um colega de trabalho, que
a matriarca não aprovava. Pela primeira vez na vida, resolveu ir em frente com
um projeto seu, sem o aval materno, o que causou uma fissura irreparável na
relação mãe e filha.
Marina
nunca quis ser mãe. “Não entendo o que leva uma mulher a querer ter filhos”,
ela dizia. Para sua alegria e satisfação, o segundo marido também não queria, e
até já tinha providenciado uma vasectomia. Combinação perfeita.
Em
uma de nossas conversas, sentindo-se à vontade por compartilharmos a mesma
opinião, Marina me confidenciou que sentia pânico de engravidar do primeiro
marido. Além da razão declarada, havia outra, que ela não contava para todo
mundo.
- Tinha muito medo de engravidar dele, porque
as pessoas de sua família são muito feias. Muito mesmo, Tessa. Inclusive ele.
Já pensou ter um filho ogro?
Dei
uma risada sonora. Se Inácio escutasse aquilo, rotularia Marina de fútil, mas
eu não era tão radical. Nunca tive uma postura tão politicamente correta como a
dele. Algumas atitudes faziam sentido para mim, embora causassem estranhamento
aos outros.
- Você ri, não é? Mas o que eu disse foi
profundo. Eu tinha pesadelos com um ogrinho e pensava muito no bullying que ele sofreria na escola. As
crianças são cruéis...
Que
o diga Michel Houellebecq, para quem “a criança é uma espécie de anão cheio de
vícios e com uma crueldade inata”.
Exageros
à parte, o argumento de Marina era bom e viria a calhar, caso Inácio não fosse
um gato. Bullying era coisa séria.
Ok,
estou brincando!
O
que interessa é que, em minha conversa com Marina, recordei-me de que, aos 11
anos, já havia escrito em meu diário: “Nunca quero ter filhos”. Àquela altura,
meu querido pai, que criava suas duas filhas sozinho, já pagava um preço alto
pela empreitada – a doença já dava seus primeiros sinais, o que sempre considerei
uma resposta física à dor da alma.
Acho
que já deixei bem claro que foi meu pai quem acompanhou a minha infância, a
minha adolescência e o início da minha vida adulta. Ele me ensinou quase tudo o
que sei. Dissipou meus medos, acalentou minha alma, consolou-me com chás de
erva-cidreira. Fez o melhor que pôde, não tenho dúvida. E jamais cedeu à
amargura ou ao ressentimento. Contudo, ficou doente. Muito doente. Acabou
morrendo. Nunca consegui relativizar o peso dessa culpa.
Por
tudo isso, a chance de eu querer repetir a história de minha família era
mínima. Ao lado de Jeannette, Marina e outras anônimas, eu engrossava as
estatísticas. Reconheço: mudei radicalmente de opinião – passei a aceitar que
tanto a ausência quanto o excesso podiam ser nocivos. Mas não havia mudado meu
posicionamento com relação ao ponto mais importante: a maternidade, ou melhor,
a não maternidade, no meu caso.
A
despeito disso, eu reconhecia que Inácio era corajoso. Tentar convencer uma
mulher com o meu histórico e a minha carga familiar a ter filhos (ou, até
mesmo, a ter um único filho) era um objetivo ambicioso. Seria mais simples ele
pleitear uma viagem à Lua.
O
que faz o coração bater?
Enviei
uma mensagem a Inácio.
A
resposta chegou alguns minutos depois.
O
seu, sou eu.
Sorri
ao olhar para a tela. Apesar de tudo, era verdade.
É
sério, Inácio. É para a Patrícia.
Patrícia
era uma colega de trabalho.
Para
um parecer?
Para
o filho dela. Pesquisa escolar.
Qual
a idade dele?
6
Ok.
Deixa eu ver... Simplificando: são células localizadas no átrio direito, que
emitem impulsos elétricos – o marca-passo natural do coração.
Muito
obrigada, lindão! Beijos!
Quem
é o médico mais fodástico que você conhece?
Fodástico???
Kkkkkkkk
Não
sei o que é isso... Defina, por favor!
Bonito,
charmoso, inteligente...
Ah,
entendi! Dr. House?
Engraçadinha...
Falando
sério, Tessa: convidei o Alexandre para jantar conosco hoje.
Alexandre
arquiteto?
Isso.
Nem
vou perguntar por quê.
Ótimo.
Às oito, está bem?
Bem
não era a palavra mais apropriada. Contudo, naquele momento, me concentrei em
planejar o cardápio para o jantar. Cogitei um salmão ao molho de cianureto. Mas
logo desisti. Alexandre era uma ótima companhia. Simpático e divertido. Seria
um desperdício. Além disso, eu amava Inácio mais do que considerava prudente
naquele momento.
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- Tessa, este salmão está divino – Alexandre
elogiou.
Salmão
ao molho de alcaparras, antes que você se pergunte.
- Minha esposinha é uma cozinheira de mão-cheia
– Inácio completou.
- A minha, não – Alexandre riu.
- E como está a Dani, Xande? - eu perguntei.
Para
mim, foi um alívio quando Inácio avisou que Alexandre iria ao jantar sozinho.
Daniela não me assustava, mas o bebê deles, sim. Há oito meses, quando nasceu,
eu e Inácio fomos visitá-los em casa. A sensação que tive foi a de entrar em um
trem fantasma. Um susto após o outro.
Enzo,
aquele bebê minúsculo e cor-de-rosa (meio arroxeado), com o umbigo pendurado,
sugando avidamente o seio da mãe me causou arrepios. Mas o clímax aconteceu
quando Daniela abriu sua fralda para trocá-lo. Eu não queria ter presenciado
aquela cena. O pintinho, que parecia adormecido, entrou em ação subitamente,
causando um estrago. Xixi na parede e em nós. Em seguida, jatos de cocô. Isso
mesmo: jatos! Nunca vi nada igual. Que potencial tinham os bebês!
Saí
do quarto apavorada, e Inácio percebeu, tanto que sugeriu que fôssemos embora,
alegando que as visitas a recém-nascidos deviam ser breves.
Antes
do episódio traumático, enquanto Daniela amamentava aquela bomba-relógio no
quarto, perguntei a ela:
- Você sempre quis ser mãe?
- Não – ela me surpreendeu.
- O que te fez mudar de ideia? - continuei,
mais curiosa que nunca.
- O Xande sempre quis. Homens... - sorriu.
Ficam só com a parte boa – e deu uma piscadinha.
Continuei
encarando o cocuruto do bebê e os seios encharcados de leite da Daniela,
enquanto ela prosseguia:
- Sou muito pragmática, Tessa. De repente,
pensei: chegou a hora. Estou com 32 anos, meu marido quer filhos, não quero ter
câncer de mama, então decidi.
- Espera aí, que história é essa de câncer de
mama?
- Amamentar diminui os riscos, você não sabia?
E eu tenho histórico familiar.
- Mas foi só por isso? - achava difícil
acreditar.
- Por tudo isso. Eu me casei com o Xande, ele
fazia questão de ter filhos, estava na minha hora, então deixei rolar.
- E agora?
- Estou exausta, não vou mentir para você. Sem
dormir direito, produzindo leite em abundância, flácida, esquisita e
melancólica, mas não me arrependo.
- Você está feliz?
- Sim, estou. E com a sensação de dever
cumprido, também.
Saí
de lá confusa.
Já
fazia oito meses que Enzo tinha nascido, e Daniela continuava muito envolvida
nos cuidados com ele. Mal saía de casa, exceto para os compromissos do próprio
bebê – pediatra, vacinas, etc. Não tinha mais convívio social, exceto com outras
mães na mesma condição. Se me tivessem dito que fora abduzida, eu acreditaria,
pois nunca a via. Segundo Alexandre, ela passara a fazer parte de um grupo de
mães cujo contato era virtual, com o objetivo de esclarecer dúvidas e prestar
ajuda mútua. Meu Deus, que tédio! - eu pensava.
Por
essas razões, ela não estava ali naquela noite. Mas o marido dela estava.
Rindo, conversando e entornando várias taças de vinho. Usufruindo o “vale-night”,
que era exclusividade dele. Sua esposa não fazia jus a um.
- Conheci o novo vizinho de vocês – ele
interrompeu meus devaneios.
- O luthier? - Inácio perguntou, curioso.
- O nome dele é Daniel – ele informou. Um
sujeito reservado, mas simpático. Disse maravilhas sobre a região. A única
ressalva que fez foi a umidade alta, que lhe causa alguns problemas de mofo no
chalé. Acho que aquele riacho é o responsável. De qualquer modo, vou estudar
uma forma de minimizar o problema na casa de vocês.
Alexandre
não trabalhava mais com projetos residenciais e só aceitou encabeçar as reformas
na Vila Mariana – detalhes que eu e Inácio queríamos mudar -, por causa de sua
amizade com o meu marido. Seu negócio passara a ser o “design universal”, ou seja, a formulação ou reestruturação de
ambientes para que fossem usáveis pelo maior número possível de pessoas,
independentemente de idade, habilidade ou situação. Eu achava aquilo muito
interessante e sempre fazia perguntas sobre os projetos. Parei no dia em que
ele decidiu me falar sobre os desafios na maternidade de mães cadeirantes. Me
senti fútil e egoísta e resolvi que não queria saber mais nada sobre design inclusivo.
Contudo,
naquela noite, depois de muito vinho, a conversa tomou um rumo inesperado. Nada
de design que inclui, mas de
maternidade, assunto que eu evitava ao máximo. Não sei bem por que, mas, de
repente, Alexandre estava nos contando sobre sua prima Gabriela, que também era
arquiteta e – surpresa! - não queria ter filhos.
- Por que não? - eu perguntei.
- Tenho uma teoria, Tessa. Acredito que sua
recusa tem relação com o fato de ter perdido a irmã mais velha, há alguns anos,
em um trágico acidente de carro.
Confesso
que não entendi o que uma coisa tinha a ver com a outra e imaginei que aquela
era mais uma das viagens intergalácticas de Alexandre. Mas aí ele explicou, e
tudo passou a fazer sentido. Muito sentido, aliás.
Anna,
tia de Alexandre, teve três filhas: Amanda, Gabriela e Sofia. Amanda, a mais
velha, cursava Medicina, namorava um colega de classe, era bonita e inteligente
e, por negligência de um motorista alcoolizado, morreu, aos 21 anos, entre as
ferragens de seu veículo. Foi um choque terrível para a família. Os pais nunca
mais se recuperaram. Anna teve depressão profunda e, desde então, vivia
recolhida e medicada.
Embora
nunca tenha falado sobre o assunto abertamente, Alexandre tinha certeza de que
Gabriela nunca se recuperou da tragédia. E decidiu que não ia correr o risco de
vivenciar a dor excruciante experimentada pelos pais.
- Acho que ela pensa assim: não vou correr o
risco de sofrer horrores por alguns momentos de felicidade.
- Será, cara? - Inácio parecia cético.
- Sim, aposto todas as minhas fichas. Mas, como
é uma questão muito delicada, não ouso interferir.
- Delicadíssima – eu me intrometi. Ninguém tem
condição de julgá-la.
Inácio
me olhou de soslaio. Então, disse:
- Bom, pessoal, eu acho que não podemos prever
todos os desdobramentos da vida. Em algumas situações, devemos simplesmente
arriscar. Respeito o luto dessa moça. Mas acredito que existem, sim,
experiências que, ainda que fugazes, momentâneas ou temporárias, são válidas.
Valem o risco.
Ponto
final. Nem eu nem Alexandre ousamos discordar.
As
palavras de Inácio não me saíram da mente. Eu sentia muito medo desses
instantes que valiam a pena. Que faziam valer toda a vida, como ele
disse certa vez.
Não
fazia muito tempo eu tinha lido um livro que me marcou profundamente: A luz entre oceanos, romance de
estreia da australiana M. L. Stedman. Um diálogo entre o casal protagonista não
despregava de mim, desde então.
Ela
segurava o galho de madressilva, afagando as flores distraidamente. Tom
arrancou uma das flores sedosas do galho.
- Nós costumávamos comer isso, quando
éramos pequenos. Você também?
- Comê-las?
Ele
mordeu a ponta estreita da flor e sugou a gota de néctar de sua base.
- Você sente o gosto por um segundo. Mas
vale a pena.
Era
um ponto de vista intrigante. E corajoso. Mas eu não era corajosa. Sabia bem
onde me doíam os calos. Não tinha disposição de ânimo para me arriscar. Nem um
milímetro. A minha cota de sofrimento era considerável, e eu não estava disposta
a ampliá-la. O que eu sabia fazer com maestria era me defender e pretendia
continuar assim. Pelo meu próprio bem.
Entendi
o drama de Gabriela como se fosse o meu. E isso só reforçava o meu ponto de
vista: não nascemos predestinados a ser algo; é muito mais complexo que isso.
Elisa Lucinda já dissera que “na grande palma da mão do mundo, as linhas de
vários destinos e caminhos não cansam de se cruzar”.
Aquela
conversa regada a vinho serviu de catalisador para algo que estava querendo
saltar de dentro de mim.
Não
dava mais para adiar. Eu precisava ser honesta comigo mesma e com Inácio. Não
podia permitir que a situação se prolongasse indefinidamente. Não era justo com
nenhum de nós. Eu sabia também que não dava para fugir dos problemas, eles
acabavam nos alcançando. Tinha chegado a hora de colocar as cartas na mesa. E
decidir o nosso futuro. Ou a ausência dele.
Eu
não tinha como saber qual ponto de vista era o correto, e talvez ambos o
fossem. O que eu precisava era dizer a Inácio como me sentia. Não podíamos
continuar fingindo que estava tudo bem. Ele queria se arriscar, achava que
valia a pena. Eu não.
Quando
era bem jovem, li o que escreveu Minou Drouet:
“Para
fazer um pêssego, é preciso um inverno, uma primavera, um verão, um outono e
uma abelha, muitas noites e muitos dias, e sol e chuva, pétalas rosadas com
pólen – tudo para que tua boca possa conhecer uns poucos minutos de prazer.”
Para
muitos, poderia ser tentador. Mas, para mim, não era.
Não
demorei a perceber que precisava de Corinne Maier, mais do que nunca. Dela e de
seu ensaio antimaternidade. Aquelas linhas sempre me animavam e me convenciam
de que eu estava no caminho certo.
O
confronto com Inácio não seria fácil. Eu já podia nos ver como dois gladiadores
em pleno Coliseu. Precisaria de ótimos argumentos a fim de fazê-lo voltar à
razão. Puxa vida, antes ele não fazia questão! Por que, de uma hora para outra,
resolvera mudar de ideia?
Era
o momento ideal para provar que eu era uma boa advogada. Que o curso de Direito
tinha servido para alguma coisa.
Decidi
então montar um dossiê com todos os contras da maternidade e da paternidade.
Nada de prós, é óbvio. Inácio teria de reconhecer que eu tinha razão.
O
grande problema era que ele era duro na queda. Eu teria que me superar daquela
vez.
-
Para uma mulher culta, você se deixa enganar muito facilmente, Tessa – ele
dissera, certa vez, a respeito de Corinne Maier, que, segundo ele, não passava
de uma fraude.
Na opinião de Inácio, Corinne não
acreditava em nada daquilo. Era mãe de dois filhos e só escreveu o livro para
se promover. Sua intenção era contrariar, chocar, dizer o oposto do que a
maioria estava acostumada a ouvir e a fazer, simplesmente porque aquilo vendia.
Confesso que já havia pensado nisso.
Ao contrário do que supunha Inácio, eu não me deixava enganar tão facilmente
assim. Mas, independente de suas motivações, eu achava que os argumentos eram
bons e faziam sentido, e era isso que importava.
- Você gosta da irreverência dela,
Tessa. Convém se perguntar por quê – ele disse.
Um breve parêntese para dizer que eu
odiava quando Inácio fazia isso. Um ortopedista me analisando era o fim da
picada.
- Vai falar sobre o meu complexo de
castração também? – respondi, irônica.
O fato é que tirei o livro de
Corinne da gaveta. Sem filhos – 40 razões
para você não ter, um texto provocador, segundo o Le Figaro. Poderia ser meu livro de cabeceira se eu não fosse
casada com o novo Inácio, que entenderia aquilo como uma ofensa pessoal. Para
evitar conflitos, ele foi para a primeira gaveta, onde podia acessá-lo
facilmente.
Psicanalista e economista, formada
em relações internacionais e economia pelo Institut d´Etudes Politiques de
Paris, Corinne se cansou dos pensamentos conformistas que conclamavam mulheres
e homens às alegrias da maternidade e da paternidade e resolveu rasgar o verbo.
Revelou, sem dourar a pílula, excelentes razões para não sucumbir à tentação e
enfrentar as consequências e os sacrifícios que essa trágica escolha pode
acarretar. Jogou por terra a onda de idealização e glamourização onipresente na
mídia contemporânea e pôs em xeque um dos tabus mais intocáveis da sociedade: a
maternidade.
Pontos para ela!
Fato é que, mesmo entre os homens,
por quem a opção de não ter filhos é mais aceita, assumir isso é um risco. Para
as mulheres, essa escolha é acompanhada de reprovação e condenação: é
impossível alcançar a plenitude sem filhos – o argumento mais comum. Isso para
não dizer que é uma atitude pra lá de suspeita.
Corinne Maier, meu oráculo, mostra
também como a educação dos filhos se tornou um sacerdócio, já que a sociedade
passou a exigir dos pais performances compatíveis aos do Super-Homem e da
Mulher-Maravilha – sempre disponíveis, sorridentes, atentos, pedagógicos e
responsáveis, ou seja, com uma conduta humanamente impossível. Sem mencionar o
indispensável sacrifício do restante – vida conjugal, sexual, lazer, amigos,
sucesso profissional.
Fortalecida pela leitura, comecei a
enumerar as razões para não ter filhos e fiz um breve resumo de cada uma delas
para entregar a Inácio. Digitei tudo, imprimi e coloquei em um envelope, como
se fosse um pedido de habeas corpus,
o que, de certo modo, era.
Então fui correr no parque,
satisfeita comigo mesma. Ao passar pela área de lazer, uma cena me veio à
mente. Há dois meses, estivera ali com Inácio. Corremos juntos e, em seguida,
paramos para tomar uma água de coco. Uma garotinha, de uns 7 anos, que estava
no balanço, pediu a Inácio que a empurrasse. Ele adorou a ideia e engrenou um
longo papo com a menina. Joana era o nome dela, não me esqueci. Fiquei
observando a cena: ele empurrando, ela sorrindo e falando. Então, exasperada,
percebi que estava com ciúmes. Isso mesmo: ciúmes! Da atenção e devoção que
Inácio estava dispensando à garota. Aquilo me fez pensar que, se tivéssemos um
filho ou uma filha, seria muito pior. Eu não suportaria. Naturalmente, me senti
um monstro.
Dizem que é difícil saber o momento
em que você se apaixona por alguém, mas, com Inácio, eu soube assim que
aconteceu. E não estava disposta a dividir seu amor com ninguém.
Escandalosamente egoísta? Pode ser. Mas eu sabia que não seria capaz.
E sabia também que era meio
neurótica. Lembrei de Janaína, uma colega de faculdade que engravidou durante o
curso, dizendo “quando o bebê passou a dormir a noite inteira, eu acordava a
cada duas horas para checar os sinais vitais”. Inácio garantia que cuidaria do
bebê à noite, numa tentativa desesperada de me convencer. Mas isso não daria
certo, por uma razão simples: eu não teria sossego. Ficava maluca quando Bela
adoecia. Quase surtei quando Luna se machucou. Como seria com um filho? Eu
teria um colapso nervoso.
Não, eu não podia ter filhos. Não
estava preparada para isso. “Nada de criança, obrigada”, nas palavras de
Corinne Maier.
Em síntese: NÃO VALIA A PENA!
Algo que doía mais do que confortava
não podia valer a pena.
Inácio
mal cruzou a porta, eu o chamei para conversar. Ele deixou sua pasta no
escritório e se dirigiu ao quarto.
Entreguei a ele o envelope. Estava
firme por fora, mas tremendo horrores por dentro.
Ele retirou as folhas impressas,
colocou os óculos e leu com calma. Observei sua expressão, tentando adivinhar
seu estado de espírito, mas ele permaneceu impenetrável. Assim que terminou, tirou
os óculos e perguntou:
- O que isso quer dizer?
O
óbvio, pensei em responder, mas me contive.
Ultimamente, as mulheres e suas
cartas bombásticas deviam estar assustando Inácio...
- Você me pediu para pensar sobre o
assunto, e eu pensei.
- E?
- Esta é a minha resposta. Não posso
ter filhos. Não quero ter filhos. E não vou ter.
Ele me olhou por um longo tempo. Foi
aflitivo! Seu olhar era triste e penetrante.
- Você tem certeza, Tessa? É sua
decisão final?
- Sim, é minha decisão final. Não
tenho nenhuma dúvida.
Ele esfregou os olhos, correu a mão
pelos cabelos e, por fim, disse:
- Então, Tessa, nós temos um
problema.
Dito isso, levantou-se, pegou as
chaves do carro e saiu, sem se despedir. Ouvi quando ele retornou às 3 da
madrugada. Fingi que estava dormindo.
Eu
estava negligenciando o que havia de mais importante na minha vida: o amor por
Inácio e a formação de uma família com ele?
Esse pensamento me assaltou na manhã
seguinte, enquanto eu tomava o café da manhã.
Será que eu estava tão equivocada
assim?
Não,
não estou – eu tentava me convencer – Isso
pode servir para outras pessoas, mas não serve para mim. Fazer como todo
mundo costuma confortar, mas é incrivelmente banal. Eu não podia cair nessa
cilada. Não podia me transformar em uma caricatura. Ter um filho é uma
possibilidade, e apenas isso. Não é obrigação.
E, convenhamos, ser mãe nos dias de
hoje é um passaporte para a loucura. Antigamente, a maioria das mulheres não
trabalhava fora do lar – dedicavam-se integralmente aos filhos e eram
absolutamente frustradas pelo vazio de sua existência. Como diria Corinne
Maier, “cansaço crônico, solidão, insatisfação, excessos à mesa e interesse
obsessivo pelos filhos: geralmente gordas e tensas dentro de roupas de baixo
desconfortáveis”. Os tempos mudaram. Agora, as mulheres trabalham fora, mas –
fazem questão de deixar bem claro – por razões econômicas e porque o antigo
modelo não levava à plenitude. A principal preocupação da nova mãe continua
sendo a prole, ninguém ouse afirmar o contrário. Sempre repetem que os filhos
vêm em primeiro lugar. Ocorre que, na prática, ela se sente uma péssima mãe e
carrega uma culpa descomunal. Sim, porque o simples fato de pôr um filho no
mundo é uma fonte de culpa terrível. Dar à luz um ser humano, ser responsável
por ele é algo muito pesado de se carregar. Assim, as mães modernas sentem que
nunca fazem o bastante, que não cuidam direito dos filhos, que não estão
suficientemente disponíveis e por aí vai. “Ficam presas entre a marreta do
trabalho doméstico e a bigorna do assalariado”, resume Corrine Maier. A mulher
“sente-se culpada. Culpada de voltar extenuada do trabalho, culpada de não
entoar a canção de ninar à noite, culpada de ter uma crise de nervos após duas
horas de berreiro, culpada de se sentir aliviada ao deixar as crianças na
creche pela manhã, culpada de se sentir feliz quando elas partem em uma
excursão da escola”. Estou fora!
Desejar um filho: o que significa?
Deixemos a hipocrisia de lado. Eu não suportava quando as pessoas diziam “não
desejo nada em troca”. Mentira. A gente sempre está esperando alguma coisa. E,
às vezes, as expectativas são grandes. A psicanálise ensina que nada é mais
destrutivo do que querer o bem de alguém, porque, no fundo, o que se quer é o
próprio bem, projetado no do outro. Além disso, um dia, você vai querer ser
pago pelo bem que impôs. Em outras palavras, nenhum pai ou mãe está à altura de
tudo o que projeta para seus descendentes. A propósito, Freud deu a seguinte
resposta a Marie Bonaparte, que lhe pediu conselhos para a criação dos filhos:
“Faça como quiser, de qualquer maneira estará errado”. Quem era eu para
discutir com Freud?
Há décadas, os filhos eram encarados
como uma fatalidade. Bem feiosa por um lado, mas com a vantagem de livrar os
pais de uma responsabilidade pesada demais. Hoje, a opção mudou tudo. A
tendência é se preocupar mais e superproteger o filho que se quis ter.
Estava tão absorta nesses
pensamentos que não notei a aproximação de Inácio. Ele atirou as folhas do
dossiê em cima da mesa. Levantei os olhos, surpresa.
- Você tem noção do quanto é difícil
te amar, Tessa?
Por essa, eu não esperava.
Mas fiz que sim com a cabeça. Eu
tinha.
- Nada disso – apontou os papéis – é
o cerne da questão. São bobagens escritas por uma lunática interessada em se
promover. O que realmente te impede de ter filhos é o fato de querer ter o
controle total da sua vida, minimizando ao máximo os riscos. Ok, você leva uma
vida asséptica; dentro do possível, evita sofrimentos. Sem riscos, mas sem
emoções também. Não vale a pena, Tessa, acredite em mim. Viver dói, sim, mas
não viver dói ainda mais. Não sou eu que estou dizendo, é a Leila Ferreira, a
quem você costuma ouvir. Essa, sim, uma pessoa sensata.
Ele fez uma pausa.
- Você não pode controlar tudo. Além
de impossível, a vida fica sem graça, sem cores. Para ser feliz, a gente tem
que se arriscar.
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A
semana foi tensa. Eu já tinha dito, com todas as letras, que não estava
disposta a ser mãe. Inácio afirmou que, nessas circunstâncias, tínhamos um
problema. Mas não tinha feito nada a respeito até aquele momento.
A reforma da Vila Mariana estava a
todo vapor. Alheio ao stress doméstico, Alexandre estava empolgadíssimo
com o projeto. Além das alterações estruturais, tínhamos dado a ele carta
branca com relação à decoração. Ele nos apresentou um layout, que
aprovamos, e partiu para a escolha e a compra dos móveis. Era um luxo ter
alguém tão gabaritado cuidando de nossa casa de campo, mas nenhum de nós estava
desfrutando disso.
Na quinta-feira, saí mais cedo do
trabalho e resolvi ir à clínica. Pensei em convidar Inácio para irmos ao
cinema. Estacionei na garagem e vi que seu carro estava lá. Mas fiquei surpresa
quando Jane, a recepcionista, informou que ele já tinha ido embora.
- O último paciente desmarcou, e o
Dr. Inácio saiu mais cedo.
Achei estranho e resolvi dar uma
volta no quarteirão. Quem sabe ele tinha ido à farmácia?
Não considerei a recomendação de
Mônica, uma dermatologista amiga de Inácio: “Nunca faça surpresas; a surpresa
pode ser sua”.
Assim que contornei a esquina,
avistei Inácio sentado em um empório, naquele mesmo quarteirão. Era um lugar
agradável e, às vezes, íamos lá. Ele estava sozinho, com um copo de chope
diante de si e a expressão indecifrável. Tive a impressão de que estava bem
longe dali.
Fiquei parada onde estava,
observando a cena. Sentado àquela mesa, meu marido tinha o olhar triste e sua perplexidade
silenciosa partiu meu coração. Decidi que não arredaria pé de lá até ter
certeza de que ele não estava esperando por alguém.
Quarenta minutos se passaram. Ele
beliscou algumas bruschetas e, por fim, pediu a conta. Então, me
apressei em ir embora. Tirei o carro da garagem antes que ele me visse.
Estava tudo errado. Ao invés de ir
para casa, Inácio preferiu se sentar a uma mesa em um local público e tomar um
chope sozinho. Ficou óbvio que queria pensar. Mas em quê? Qual era a decisão
que estava inclinado a tomar?
Liguei para Anita. Precisava
desabafar com alguém.
- Vocês se amam. Vão superar isso –
ela disse, assim que relatei os últimos acontecimentos.
- Não é tão simples assim.
- Calma, Tessa.
- Me diz uma coisa: como sabemos
quando o casamento acabou?
- Ah, não, Tessa! Não é para
tanto...
- É sim, Anita. Ele está diferente,
distante. Não me surpreenderia se amanhã ele pedisse o divórcio.
- Bom, acho que um casamento acabou
quando não rola sexo há anos.
- Não é o nosso caso.
- Está vendo?
- O que mais?
- Ah, sei lá. Quando ele não te
deseja mais.
- Ele me deseja, sei disso.
- Quando acaba o respeito.
- Acho que ainda não chegamos a esse
ponto.
- Quando acaba a admiração pelo
outro, aquela que um dia encheu os olhos.
- Ainda admiro o Inácio, e acho que
ele me admira, apesar de tudo.
- Quando não existe mais diálogo
entre o casal.
Bingo!
Esse último me assustou.
- O que foi, Tessa?
- Talvez não exista mais diálogo
entre nós.
- Não diga isso. Faça alguma coisa,
então.
- Não depende mais de mim. Já disse
o que pensava. A decisão está nas mãos dele agora.
O capítulo 8 será publicado na
quarta-feira, dia 6 de novembro.
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Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Adriano Machado, Ana
Carolina Chaves, Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira.
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