Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

CAPÍTULO 5


Inácio me chamou de neurótica. Ele não falou com todas as letras, mas foi o que quis dizer. Doeu profundamente, principalmente porque percebi que aquilo divisava uma nova fase no nosso relacionamento. Havia, sim, uma realidade que, embora eu não ignorasse, estava confortavelmente acomodada em meu interno. Ter que lidar com aquilo, repentinamente, foi bem impactante. Mas ele não estava mais disposto a fazer concessões.

Tudo começou com o Whatsapp. Nós dois nunca fomos entusiastas das tecnologias modernas. Não tínhamos Facebook, Twitter, ou qualquer uma dessas coisas, por opção. Um endereço de e-mail era tudo. Às vezes, eu me perguntava se estávamos na contramão da história. O fato é que isso nos manteve longe dos problemas por um bom tempo.

Quando o Facebook virou febre no Brasil, cheguei até a criar um perfil. Mas, no final das contas, aquilo acabou de me dando mais dor de cabeça do que satisfação. Então, desisti dele. Meu argumento costumava ser o de que as redes de relacionamento estavam aniquilando o convívio social, mas não era só isso. É que dizer isso simplificava as coisas. E não era de todo falso. Eu havia lido um conto de ficção científica, que apontava justamente essa tendência: em futuro não muito distante, em que cada indivíduo vivia em sua própria bolha, um avô resolve contar ao neto como eram as relações sexuais em sua época. Perplexo e estarrecido, o garoto pergunta: “Credo, vovô, vocês se tocavam? Que nojo!”.

A leitura de Adeus, Facebook – O Mundo Pós-Digital, de Jack London, também não ofereceu um panorama muito otimista da situação. Ele falava sobre a velocidade das transformações no mundo e mostrava como tudo acontecia cada vez mais rápido, e que era inevitável que o que hoje é essencial, amanhã se tornasse obsoleto.

Infelizmente, o Whatsapp não era obsoleto. Ainda. E, quando Cássio, um amigo de infância de Inácio resolveu criar um grupo utilizando a plataforma, meu marido resolveu instalar o aplicativo. No início, quando o celular apitava a cada 10 minutos, ele ficava incomodado, mas, com o tempo, passou a gostar das trocas virtuais.

E, aos poucos, começou a surtar.

A maioria de seus amigos era casada e tinha filhos pequenos. Naturalmente, o que mais se compartilhava ali eram fotos de crianças sorridentes. Abro aqui um parêntese para dizer que Inácio tinha surtos esporádicos sempre que íamos a festinhas infantis dos filhos de seus amigos. Isso porque, às festinhas dos filhos dos meus amigos, eu evitava ir. Comprava um presente e dava uma desculpa. Mas, com o Whatsapp, os surtos eventuais tomaram forma de transtorno mental. A gota d´água foi o dia em que um de seus amigos “mala” postou a foto de seu casal de filhos com o seguinte comentário:


Ok, sei que traduzir em palavras estes momentos, muitas vezes, tira deles grande parte de seu significado, mas qual sentimento estaria atuando em minha consciência diante dessas imagens, e como ampliá-los? Gratidão e o verdadeiro amor são apenas uma pequena fração do que ainda posso cultivar na vida.


Inácio fez questão de me mostrar. Que viagem intergaláctica!, pensei. Mas não disse, porque percebi que ele estava levando aquilo muito a sério.

- Quais são as chances de você mudar de ideia, Tessa? - começou.

- Ah, não, Inácio. Não quero conversar sobre esse assunto agora.

- Mas eu quero conversar sobre isso AGORA. Chega de adiar.

       Percebi que não tinha como escapar.

- Qual é, Inácio? Esse drama todo por algumas fotos bobas e palavras vazias?

- Não tem nada de vazio nisso.

- Já te disse. As pessoas adoram exibir seus “comerciais de margarina”, mas isso não é a vida real.

- Você não sabe. Nunca foi mãe.

- Nem quero saber.

- Mas eu quero. Não quero passar a vida baseado no SE. Quero experimentar, quero saber. Se eu não tiver um filho, nunca terei a oportunidade de saber como é.

Fiquei em silêncio, tentando articular argumentos para contraditá-lo. Mas, antes que pudesse dizer algo, ele soltou a bomba:

- Você tem medo: a verdade é essa. Mas você não é a sua mãe!

- Isso não tem nada a ver com a minha mãe – falei, em tom exaltado.

- É claro que tem.

- Como assim?

- Tessa, você é tão inteligente. Isso não é óbvio para você?

- O que é óbvio?

- A denegação.

- Que denegação? Do que você está falando?

Ele não respondeu.

- Freud? Você também? Está me chamando de recalcada?

- É você que está dizendo.

Senti uma lágrima escorrer dos meus olhos e tive ódio de mim por estar chorando na frente dele. Ele percebeu.

- Tessa, você repete que não está nem aí para sua mãe, mas age de forma ostensiva para contrariá-la, para fazer o oposto do que ela fez, enfim, para provar o quanto ela foi péssima com você. Isso mostra o quanto você está preocupadíssima com ela. Ela está no centro da sua vida, sempre esteve, embora você negue isso. Quer saber? Pontos para ela!

Não consegui dizer nada. Estava entalada. Um gosto de bile subia pela minha garganta.

- Você precisa lidar com essas questões e abandonar, de vez, esse falso discurso. Pense nas pessoas que realmente importam para você, e não em alguém que não está aqui, nem nunca esteve. Você está perdendo o seu tempo. E ficando amarga.

Fez uma pausa e, então, completou:

- Você não precisa ser a melhor mãe do mundo. Seja a melhor mãe que conseguir ser. Será o suficiente, acredite em mim.

Então, ele se retirou da sala, me deixando com o rosto encharcado de lágrimas.


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Em 1925, Freud, o pai da psicanálise, publicou A Negativa (Verneinung), um artigo curto, porém denso, no qual se propôs a examinar a denegação, a que Inácio fizera referência.

No texto, Freud apresenta um diálogo em que o paciente, a respeito de um sonho ou uma fantasia, diz: “Esta não é a minha mãe”. Esse “não”, segundo ele, deveria ser desprezado, uma vez que é exatamente da mãe que se trata.

Comecei a entender o que Inácio estava insinuando. Ao contrário do que possa parecer, nem sempre, o sim é sim, e às vezes chega a ser não. O que, à primeira vista, parece uma negativa, pode ser, na verdade, uma afirmação.

De acordo com Freud, a negativa pertence ao instinto (à pulsão) de destruição. Se eu gosto, eu engulo; se eu não gosto, eu cuspo.

É a negativa um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; é uma suspensão da repressão, não uma aceitação do que está reprimido. O juízo negativo é, portanto, um substituto intelectual do recalque.

Freud separa o intelectual do afetivo. A negativa é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado em seu plano apenas intelectual. O que está em jogo é uma suspensão do recalque, não sua plena aceitação. Na verdade, com a negação, somente um dos resultados do processo de recalque é revertido: aquele que impede que o conteúdo da ideia alcance a consciência. Disso resulta, então, uma aceitação apenas intelectual do recalcado, o essencial permanece intocado.

Negar algo basicamente quer dizer: “Isto eu prefiro recalcar”.  A atitude de condenar nada mais é do que um substituto intelectual do recalque, e o “não” é sua marca registrada.

Não tem nada a ver com a minha mãe – repeti isso a minha vida inteira. Embora, no fundo, soubesse que tinha. Inácio estava certo. Eu tinha reprimido meus sentimentos em relação a ela. Ou, pelo menos, havia tentado. Contudo, não estava convencida de que isso chegara ao ponto de influenciar a minha decisão de ter ou não filhos. Se fosse esse o caso, eu seria, de fato, uma Veineinung ambulante. Mas, não, não era.


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Apesar disso, caí em depressão nos dias subsequentes. Aquela história de denegação mexeu demais comigo. Fosse ou não o meu caso (eu não tinha como saber com certeza, pois não havia procurado um psicanalista), fiquei assustada com o panorama que se desenhou para mim. Nunca achei que fosse perfeita, mas nunca me senti tão pequena.

Para falar a verdade, nos meus surtos megalomaníacos, eu chegava a me comparar a mulheres fortes, que fizeram história, como Rosa Parks. Pensar que talvez eu estivesse no extremo oposto me deprimiu bastante.

Naqueles dias, Inácio percebeu o que se passava comigo e manteve uma distância estratégica. Não tocou mais no assunto, não forçou a barra e respeitou a minha solidão.

A dor demorou a passar. E não sei ao certo se me abandonou por completo depois daquilo.

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Um sonho. Daqueles.

Freud certamente teria uma ótima explicação. Inácio também, se eu tivesse contado para ele.

Mantivemos, eu e Inácio, nossas rotinas nas semanas seguintes, como se nada tivesse acontecido, mas algo pairava no ar. Nos afastamos um pouco, e um olhava para o outro com desconfiança.

Certa noite, sonhei que chegava à maternidade com Nina, ambas grávidas, prestes a dar à luz. Fomos colocadas em macas, no mesmo quarto. Enquanto Nina lutava por um parto normal, a exemplo de nossa mãe, os médicos concluíam que eu não teria a mesma sorte e me conduziam ao centro cirúrgico, para que fosse submetida a uma cesárea. Foi um alívio para mim, mas mantive segredo sobre isso, já que não ousava externar a minha fraqueza. Sempre me apavorei diante da possibilidade de parir um filho pelas vias naturais.

Quando tudo acabou – em uma fração de tempo imprecisa, voltei ao quarto e encontrei Nina, suada e ensanguentada. Minha mãe estava ao seu lado, segurando sua mão e insistindo para que fosse forte. Parecia orgulhosa de sua filha mais velha.

Até então, eu não tinha visto o meu bebê. Ele fora levado assim que nasceu. E não o veria até o final do sonho. Não sei se era menino ou menina, ele desapareceu por completo. Inácio também não estava lá.

Assim que Nina deu à luz, seu bebê, sem sexo ou nome, também foi levado. Minha mãe cuidava dela, que parecia cansada, mas realizada. Ela tinha feito o certo. Comigo, ninguém se importava.

Acordei com uma sensação horrível, de fracasso.

O sonho não se desprendeu de mim durante vários dias.

Uma coisa, no entanto, ficou óbvia: com ou sem denegação, eu estava fora! Naquelas águas turvas não me atreveria a mergulhar.

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O almoço com Anita foi estrategicamente agendado. Eu precisava conversar com alguém sobre o que estava acontecendo. Mas descobri que ela também estava com problemas e precisava desabafar.

- Você não vai acreditar: acho que estou entrando na menopausa – disse.

- O quê? Você tem 35 anos...

- Pois é, menopausa precoce. Meu médico me disse que isso está muito comum hoje em dia.

- Sério?

- Na última consulta, ele me contou que a próxima paciente seria uma moça de 32 anos que pretendia engravidar do primeiro filho, para quem ele teria que dar essa triste notícia.

- Sim, é triste, mas não é Racine – soltei.

- Quem?

- Jean Racine, um tragediógrafo moderno.

- Ah, entendi – suspirou. E completou: Tragédia, para mim, se resume a Shakespeare.

- Sim, ele tem características trágicas. Romeu e Julieta, Hamlet e Otelo são um bom exemplo. Mas sua obra não se resume a isso. Você sabia que a literatura grega reúne três grandes tragediógrafos que acho fantásticos? Sófocles, Ésquilo e Eurípedes...

- Tessa – ela me interrompeu. É impressão minha, ou você está fugindo do assunto?

- Sim, acho que estou – disse, com sinceridade. Olha só: a minha chefe também entrou na menopausa precocemente, aos 40, por questões emocionais – divórcio traumático. Ela toma uns remedinhos de reposição. Como você vai confirmar?

- Vou fazer uns exames. Dosagem de hormônios. Até lá, só me resta esperar.

- E como você está se sentindo?

- Ah, fiquei bem chateada. Não esperava, sabe? Mas a primeira coisa que pensei foi: ainda bem que já tive os meninos!

Anita era mãe de dois garotos, de 6 e 4 anos.

- Podia ser eu, ao invés de você – pensei alto.

- Não fala bobagem, Tessa. Se você cogita minimamente ter um bebê, não dê chance ao azar. Tenha logo!

- Dou todas as chances possíveis, torcendo muito para que ele, o “azar”, me escolha.

- Ah, não!

- É verdade. Não quero, nem minimamente, uma criança. Ainda mais depois do pesadelo que tive... Nossa, todos os medos que me acompanham foram reforçados. Foi útil, porque endossou a minha decisão.

- Tem certeza?

- Tenho.

- Ai, meu Deus!

- Mas não consigo dizer adeus ao Inácio, então o azar teria que me ajudar.

- Você já disse a ele que não quer de jeito nenhum, e ponto final? Às vezes, ele vai te surpreender e não vai ter adeus...

- Ele sabe que não quero. Sempre soube. Mas agora não arreda pé, embora, no início, tenha dito que não fazia questão. Então, não posso colocar as coisas desse jeito, porque não quero assumir o risco de perdê-lo.

- Ai, Tessa, não sei o que dizer. Que dilema, hein?!


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Contra a minha vontade, Inácio me adicionou ao grupo de amigos (dele) no Whatsapp, na esperança de que a enxurrada virtual de fotos e mensagens me fizesse mudar de ideia. Disse a ele que concordava com o recente discurso do presidente uruguaio, Mujica, na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em que destacou a formação de uma nova civilização contra o tempo livre, “que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite ter tempo para viver as relações humanas”, mas Inácio não deu a menor trela. Assim como ignorou a minha sugestão de leitura da magnífica obra A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa. Ele não tinha o menor interesse em discutir essas questões comigo, tamanho era o seu envolvimento com aquele grupo de amigos e seus filhotes sorridentes. Assim, me abstive de acrescentar que também a Leila Ferreira dissera algo muito apropriado: “a sensação é que arrancaram as cortinas do mundo, e as janelas estão todas abertas, as portas, escancaradas. Tudo se diz, tudo se mostra, tudo se explicita. Não há mais bastidores, não há mais avessos, não há mais intimidade”.

Então, inevitavelmente, comecei a receber os posts diários, centenas deles. Era difícil acompanhar aquilo, e comecei a achar que estava com a “síndrome de vibração fantasma” – achava que o celular estava vibrando quando não estava. Os frequentes erros de português também me irritavam profundamente. Tive que respirar fundo para não corrigir um “Nada haver”, pois não queria parecer chata. Mas, quando um “menas” apareceu, não aguentei e comentei com Inácio:

- Seus amigos não tiveram aulas de gramática?

Ele me lançou um olhar furioso.

- Tessa, por que você não para de se preocupar com bobagens? Isso é mesquinho. Concentre-se no essencial.

Que essencial?, quase perguntei, mas consegui me conter. Eu estava aprendendo que certas coisas era melhor calar. Depois que as palavras são ditas, não se pode mais buscá-las de volta.

Tornei-me, assim, a mulher invisível no grupo. Tinha até dúvida se o pessoal se lembrava de mim. Até o dia em que soltei o dedo no teclado (esquecendo-me completamente de que aquelas palavras não teriam volta) e foi um desastre...

A esposa de um dos amigos de Inácio, uma garota bem quadradinha, que não dava uma dentro, sabe-se lá por que, resolveu opinar sobre o suicídio de uma celebridade, fartamente noticiado pela imprensa naquela semana. Antes que eu entre na questão propriamente dita (e na confusão que criei), preciso abrir um parêntese (pode ir se acostumando, sou a mulher dos “parênteses” - de acordo com Inácio, a minha vida é um grande parêntese, mas não quero falar sobre isso agora, nem sobre as teorias psicanalíticas dele). Enfim, o que quero dar é um recadinho para a imprensa: o suicídio representa um problema social e seus índices têm aumentado nos últimos anos. Para a Organização Mundial de Saúde, mais de um milhão de pessoas tiram a própria vida por ano, e esse número pode chegar a um milhão e meio em 2020. Alarmante, não é?

Pois é.

O comportamento suicida resulta de uma interação complexa de vários fatores, que vão desde a situação de pobreza, desemprego, rompimento afetivo, discussão, perda de entes queridos até enfermidades que causam deficiência ou que afetam a estabilidade mental do indivíduo, como a depressão. Portanto, essa atitude não deve ser mostrada como inexplicável, nem de uma maneira simplista, porque nunca resulta de um evento único.

Dito isso, uma das grandes dúvidas que tenho é se publicar notícias sensacionalistas a esse respeito constitui estímulo ao suicídio. Será que a publicidade é um dos fatores que pode levar um indivíduo vulnerável a tirar sua vida? Na dúvida, acho que os meios de comunicação deveriam ser mais prudentes e agir com mais cautela e responsabilidade.

Vamos lá: uma das primeiras associações conhecidas entre os meios de comunicação de massa e o suicídio ocorreu com a publicação, em 1774, de Os Sofrimentos do Jovem Werther, romance de Goethe, em que o herói se dá um tiro após um amor malsucedido. Depois da publicação, vários jovens na Europa cometeram o suicídio usando o mesmo método. O fato resultou na proibição do livro em diversos locais e originou o termo “efeito werther”, usado na literatura técnica para designar a imitação de suicídios. Outro caso famoso é o livro Solução Final – Praticabilidade da Autoeliminação, de Derek Humphry, cuja publicação elevou o número de suicídios cometidos em Nova York usando-se os métodos nele descritos.

Para alguns estudiosos, o grau de publicidade tem relação direta com o número subsequente de suicídios, e casos envolvendo celebridades têm um impacto maior.

Dessa forma, embora a cobertura jornalística de qualquer evento seja, em princípio, justificável, há sempre a possibilidade de que a publicidade ostensiva sobre o tema incentive esse tipo de comportamento, razão pela qual a imprensa deveria ter mais cuidado. Recentemente, um professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG disse que o problema não é a abordagem do tema em si, mas a forma. Segundo ele, a troca de informações é importante para a prevenção. Mas alguns cuidados são indispensáveis: na mídia, não se deve falar sobre casos isolados, particulares ou sobre os motivos que levaram ao suicídio, pois uma pessoa que passa por problemas parecidos pode achar que essa é a solução.

Feitas tais ponderações, volto à mensagem, recheada de erros gramaticais e preconceitos absurdos, da “wonderful” esposinha do amigo de Inácio. Lá vai (segura essa bomba, se puder):


bom, não sou fã de postar opiniões aqui, mas hoje vou falar... não sei o que vcs avaliam como ídolo, mas o dia que meu coração resolver idolatrar alguém que em seu currículo tem a capacidade de ser amado por uma multidão de jovens e ainda sim desistir da vida por se sentir sozinho, aconselhar sobre relacionamento e não conseguir manter seu próprio casamento, morrendo assim em meio a drogas, bebidas e remédios ou conquistar uma nação e não resistir a um mísero câncer ou conquistar uma geração, mudar de cor, dançar muito, ficar milionário e morrer como um tolo em meio a remédios e drogas ou até quem sabe conquistar o mundo e chorar por não ter mais aonde conquistar... mas ser morto por um mísero mosquito... nesse dia vou descobrir que estou muiiiiiiiiiiiito ruim de exemplos e espelhos pra minha vida...


Oh, my God!!! Estou sonhando? É mais um pesadelo? – foram as primeiras coisas que pensei assim que o meu celular apitou naquela manhã e li aquela mensagem sem pé nem cabeça. Aquela garota tinha um problema sério, além do seu preconceito desmedido. Inácio poderia analisá-la, ao invés de mim...

Não pensei duas vezes e digitei uma resposta. Se ela podia dizer todas aquelas barbaridades, eu também podia manifestar o meu ponto de vista, certo?

Certo, desde que eu tivesse tido um mínimo de diplomacia. O que não tive. Sem respeitar qualquer regra de etiqueta, digitei furiosamente.


Não sei o que é pior:

1.    não entender um PINGO de psicologia humana, por não saber que alguém pode estar cercado por uma multidão e, ainda assim (e não ainda sim), sentir-se sozinho;

2.    acreditar que um divorciado é um eterno derrotado em todas as áreas sentimentais da vida;

3.    as causas da morte do indivíduo ainda são desconhecidas, mas já foi dada a versão preconceituosa (droga, bebidas e remédios);

4.    Mísero câncer??? Esse foi show! É do Hugo Chávez que se trata? Convém ser mais direto quando se faz insinuações desse tipo...

5.    “Morrer como um tolo”? Deduzo que seja o Michael Jackson. Desde quando um pobre-coitado deprimido é tolo? Muito cristão!

6.    E quem é o que morreu por um mísero mosquito? Alexandre (que ninguém sabe ao certo se foi mesmo malária)? Quer dizer que as pessoas que têm morrido aos montes de dengue também são fracassadas?

Me seguuuuuuuuuuuuuuuuuuuuura, senão eu MA-TO!!!


Um longo silêncio se fez no grupo.

Então, para quebrar o gelo, Cássio, o moderador, se arriscou:

Concordo com vc, Tessa. Mas... Viva a diversidade!

A minha resposta foi:

Bem, é uma pena que tenhamos que conviver com uma diversidade tão picareta...

Silêncio definitivo.

E, depois de uma longa pausa, mudança radical de assunto. Novas fotos de bebês alegres povoaram o cenário.

Intuí que teria problemas. E não deu outra.

Assim que Inácio entrou pela porta, me olhou, contrariado, e disse:

- O que foi aquilo, Tessa?

- Eu só disse o que penso.

- Você não precisa dizer tudo o que pensa.

- Prefere que eu seja hipócrita?

- Prefiro que você seja cordial. Mantemos uma cordialidade ali, não percebeu? Você foi muito indelicada. E tenho a impressão de que fez de propósito.

Bingo! Ele estava certo.

Era o que eu pensava, realmente. Mas escrever aquilo foi uma forma de expressar a minha inadequação e a minha insatisfação crônica. Deixei a diplomacia de lado, e o meu lado hardcore entrou em cena, com violência total.

Mesmo assim, tentei disfarçar.

- Não pira, Inácio. Sem paranoia! Até mesmo Freud dizia que, às vezes, um charuto é só um charuto.

Mas ele não era bobo.

- Foi artilharia pesada – concluiu, mostrando que não se deixaria enganar.

Então, sem dizer mais nada, foi ao quarto, trocou de roupa, apanhou sua mochila de treino e disse:

- Vou nadar. Não me espere acordada.

Assim que ele saiu, senti um vazio esquisito no peito.

Nossas conversas estavam ficando cada vez mais difíceis. E eu sabia que precisava fazer o mea-culpa.


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            Outro sonho bombástico que me tirou completamente dos eixos.

            Desta vez, Inácio estava presente. Bem presente, por sinal.

            Por circunstâncias não esclarecidas, Inácio passara a trabalhar em São Paulo. Dessa forma, ficava metade da semana lá e a outra metade, aqui. Senti que isso estava nos afastando. Quando ele ia para lá, mal me ligava. Comecei a desconfiar de que algo estava errado.

            Certo dia, resolvi ligar para o celular dele no meio da tarde e uma mulher atendeu.

            - Quem está falando?

            - É a Duda.

            - O Inácio está aí com você?

            - Ele está no banho.

            Naquele instante, entendi tudo.

            Dois dias depois, ele voltou e eu o confrontei. Ele não negou nada. Estava tendo um caso com a Duda, uma amiga da época da adolescência.

            - Aquela loura gordinha? – perguntei, cética.

            - Sim – ele respondeu.

            Fiquei confusa. Estava esperando um mulherão de um metro e oitenta, corpo de miss, o rosto da Michelle Pfeiffer (a mulher mais bonita do mundo, na minha opinião), e por aí vai. Duda estava mais para Mônica, a famosa personagem de Maurício de Sousa: baixinha e gordinha; a única diferença é que era loura. Além do mais, não era novinha. Devia ter a idade dele. Ele estava me traindo com ela? Por quê? Fiz essa pergunta a ele.

            - Gosto dela – limitou-se a responder.

            - E o que ela tem que eu não tenho?

            - Sei lá, Tessa, vocês são diferentes.

            - Diferentes como?

            - Ela não é bonita nem vaidosa como você. Não liga para a aparência, sequer usa batom. Outro dia, íamos ao cinema e, antes de sair, tive que dizer a ela que aquela roupa não era adequada... Por outro lado, ela não tem o seu temperamento difícil. Ela é tranquila, solidária e, sobretudo, dócil.

            Quis dizer a ele, no sonho, o que sempre achei dessa característica – docilidade -  em uma mulher: um erro. Sob a roupagem de “dócil”, as mulheres acabam se tornando submissas e nulas. Já vi um bocado de mulheres dóceis sem qualquer voz ativa em casa. E isso não é bom para ninguém, nem para os próprios companheiros.

            Certa vez, um amigo me confidenciou que, no fundo, apreciava o fato de sua esposa ser brava, embora não tivesse a intenção de contar isso a ela. Segundo ele, isso o ajudou a crescer, a amadurecer, a evoluir. Se ela fosse dócil e acatasse tudo, ele teria ficado estacionado.

            Tentei dizer isso a Inácio, mas as palavras não saíram. Não consegui dizer também que o esforço para ser dócil me faria profundamente infeliz, pois não combinava comigo.

            Acordei engasgada. E com um pouco de raiva dele. Demorei para conseguir separá-lo do  homem do sonho.

            Não tirei o sonho da cabeça o resto do dia. Eu detestava aquele adjetivo. Quem era dócil era cachorro. Uma mulher necessitava de outros atributos.

            Mas também reconheci que eu andava irascível. Achei o máximo quando uma dermatologista, em minha primeira consulta, disse que eu tinha uma personalidade imponente. Ela era meio “bruxinha”, do tipo que lê as pessoas (ou diz que lê). O fato é que, naquele momento, já  não sabia mais se aquilo era bom. Eu não queria ser submissa, mas também não queria parecer impositiva. Será que Inácio me achava mandona?

            Eu queria ser firme e suave, ao mesmo tempo. Mas, nos últimos dias, andava agressiva. Aquela explosão no Whatsapp foi uma amostra disso.

            Concluí que talvez Inácio estivesse realmente insatisfeito comigo. Ele sempre adorou o fato de eu ser estudiosa, decidida, ter convicções firmes e opiniões próprias, mas, aparentemente, cruzei alguma fronteira, e ele não estava muito feliz com as minhas recentes atitudes. E talvez com a minha rigidez.

            Naquela noite, não me aguentando, perguntei a ele:

            - Inácio, você tem visto a Duda?

            - Duda? Que Duda?

            - Aquela amiga sua da adolescência...

            - Ah... Não, não a vejo há anos. Por quê?

            - Por nada. É que me lembrei dela outro dia.

            Ele olhou desconfiado.

            - Tem notícias dela? – eu quis saber.

            - Há alguns anos soube que ela se casou e teve dois filhos. Um casal, eu acho.

            - Ah...

            Sabia! Não foi à toa que sonhei com ela. Duda sempre fez o tipo “mulher de família”. É claro que adotaria o modelo convencional de casamento com filhos.

Eu não disse mais nenhuma palavra. Não costumava ser tão ciumenta, mas era óbvio que alguma coisa estava mudando.



 O capítulo 6 será publicado na próxima quarta-feira, dia 30 de outubro.
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 Texto: Cynthia França
 Revisão: Arilma Peixoto
 Colaboração: Adriano Machado, Anita Lima, Elissama Freitas, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira e Miriam Porto.


4 comentários:

  1. ai.... tá ficando tenso.... ! estou adorando cynthia! parabéns! bj

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  2. Será que Tessa não mudará de ideia? Estou com medo dele achar uma "Duda"por aí...
    Bjs

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  3. Achei muito interessante a introdução e abordagem, ainda que passageira, de um tema sobre o qual as pessoas geralmente evitam conversar: o suicídio.

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  4. Olá cara Cynthia,

    estou gostando da leitura de "A Escolha de Tessa", é uma história que faz pensar, trata do cotidiano com formalidade e sem baixar o nível, mostra diferentes psicologias, que é um retrato da diversidade da psicologia humana mesmo! E o mais importante: faz reagir ou faz pensar... o problema é se o leitor ficar só no reagir, mas se aceitar o convite pra reflexão e pensar, aí sim pode ir longe, pensar com liberdade e até mesmo extrair algo desse exercício mental reflexivo para sua vida mesmo!

    Ah, gostei muito de ter falado do efeito Werther, pois é uma realidade cientificamente comprovada e que tem sido base de um interessante projeto em nosso país: http://www.brasilsemviolencianamidia.org.br/

    Esse projeto, liderado por alguns amigos, já conta com mais de 100.000 pessoas que o curtem no Facebook. É um importante projeto, que pode positivamente afetar a imprensa brasileira, evitando sensacionalismos tão maléficos ao pensar e sentir humanos.

    Bem, as escolhas de Tessa e demais personagens continuam... E de nós leitores também... Que venha o capítulo 6.

    Ah, fica a sugestão para continuar variando as cores, que tal um laranja ou prata para o capítulo 7? rs

    Vamos em frente...
    Agradeço pela sua obra literária e por compartilhá-la conosco!

    Saludos! E um abraço!
    Adriano.

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