Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CAPÍTULO 4


Normalmente, um final de semana com Mel e Luna era o suficiente para me fazer lembrar das várias razões pelas quais não queria ter filhos. Mais tempo que isso, era impensável.
Eu devia ter desconfiado de alguma coisa quando Nina me convidou, sem razão aparente, para almoçar em plena segunda-feira. Não era do seu feitio.
Contei a ela sobre as cartas de Irene. Ainda não havia desabafado com ninguém.
- Menina, que história! – ela se limitou a dizer.
- Nem me diga...
- Não sei se eu teria tanto autocontrole, se fosse com o Maurício.
- Eu fiquei bem chateada, Nina.
- Mas se comportou muito bem, como uma lady.
- Você queria que eu tivesse armado um barraco?
- Não, Tessa. Mas por que você não dá um filho para esse homem de uma vez por todas?
- O que uma coisa tem a ver com a outra? – perguntei, alarmada.
- Eu te conheço. Você não armou um barraco, porque, no fundo, se sente em dívida com ele.
- Tá maluca? Que bobagem é essa? Não estou em dívida com ninguém... De onde tirou isso?
Ela não respondeu.
- Você anda frequentando muito a terapia, Nina – alfinetei.
- Qual é o problema, Tessa?
- Como assim?
- Por que não dá logo um filho para o Inácio?
- Que inferno, Nina! Já conversamos sobre isso um milhão de vezes. Além do mais, não é uma questão de dar, você sabe muito bem disso. Quem é que fica com a maior parte do trabalho e das preocupações? Inácio diz que adora crianças e que vai me ajudar. Certo. No final de semana em que Mel e Luna foram lá para casa, ele cancelou o futebol com os amigos? Claro que não! Quem desmarcou o cabeleireiro fui eu.
- Hum... – ela pigarreou.
- Quer saber? Ele sempre soube que eu pensava assim. Casou-se comigo sabendo disso. Como é que se diz por aí? “O combinado não sai caro”.
- É o que dizem... - ela suspirou. Sabe, Tessa, queria te pedir uma coisa, mas agora estou em dúvida se devo...
- O que é? – comecei a ficar com medo.
- Você poderia ficar com a Mel e a Luna para mim por uns dias? - ela disse, de uma vez.
- Por um final de semana?
Ela fez uma pausa.
- É meu aniversário de casamento, e eu e Maurício pensamos em fazer um cruzeiro...
- Um cruzeiro? – perguntei, atônita. Quantos dias?
- Sete.
Ah, meu Deus!
- Sei que são muitos dias, mas não posso pedir isso à D. Eva. Ela anda muito doente – completou.
A mãe de Maurício estivera hospitalizada há pouco tempo.
Tentei pensar friamente.
Nina era minha irmã e só podia contar comigo. Seria muito egoísmo recusar esse pedido. Eram vários dias (uma eternidade!), mas, na maior parte deles, as meninas iriam para a escola. Eu não precisaria ficar por conta delas o dia todo. Além disso, também estaria trabalhando.
- Tudo bem – eu disse, por fim, o que fez Nina vibrar de alegria.
Quando contei a Inácio, naquela noite, ele adorou a notícia. A empolgação dele foi irritante. Lancei-lhe um olhar cortante.
- Calma, Tessa. São só suas sobrinhas. Não é o bebê de Rosemary.
- Muito engraçado – me limitei a dizer.
Mel e Luna chegaram à nossa casa em uma quinta-feira à noite, de mala e cuia. Trouxeram também seu cardume e o cãozinho de estimação. Bela odiou a novidade. Ela não sabia dividir nada. Era uma criança extremamente mimada, o que provava meu ponto de vista, segundo o qual seria péssima mãe. Não sabia educar nem um cachorro.
- Ué, cadê o papagaio? – perguntei, ironicamente.
Inácio me lançou um olhar mortal.
Na sexta-feira, passei a tarde inteira me desdobrando entre o meu trabalho e as aulas de natação e balé das meninas. À noite, eu estava morta.
- Ser mãe não é para mim – disse a Inácio. Estou um caco. É difícil demais!
- Não é difícil, Tessa. Você se saiu bem. É trabalhoso.
Como Inácio estaria de plantão no dia seguinte, planejei uma programação intensiva com as meninas, de modo que estivessem exaustas no fim do dia, o que me garantiria uma noite romântica com o meu marido. Os sábados à noite sempre foram nossos, e eu não estava disposta a abrir mão disso. Ainda que fôssemos obrigados a ficar em casa, havia muitas coisas que poderíamos fazer.
Levei-as ao zoológico pela manhã, então almoçamos no Mc Donald’s, e fomos ao cinema à tarde. Fiz tudo do jeitinho que uma mãe não faria, mas que se espera que uma tia faça. Deixei que almoçassem sanduíches, comprassem brinquedos caros na loja do shopping, se entupissem de pipoca e guloseimas durante o filme e (pasmem!) furassem a fila do cinema. Como educadora, eu me daria nota zero.
Sempre detestei filmes infantis. Tem adulto que gosta – tipo Inácio, que me obrigou a assistir a “Meu Malvado Favorito” (dormi no filme...) -, mas não consigo achar a menor graça. Nem quando era criança, eu gostava. Mas aquela película me surpreendeu. Nunca tinha ouvido falar dela, provavelmente porque não me interessava pela programação cultural infantil. Reino Escondido era o nome da animação da Blue Sky, que contava a história de Maria Catarina, uma adolescente órfã de mãe que vai morar com o pai, um cientista maluco. Não deveria ser difícil para Freud explicar minha imediata identificação com a sofrida garota. Odiando sua nova vida com todas as forças (no que lhe dei inteira razão), a menina é subitamente transportada para um mundo misterioso escondido na floresta. Como em Querida, encolhi as crianças, ela fica do tamanho de um inseto e passa a interagir com os “homens-folha”, guardiões da floresta, numa aventura de tirar o fôlego (das crianças, é óbvio). Para não fugir à regra, se apaixona por um dos homenzinhos verdes, um jovem rebelde, irreverente e corajoso – uma mistura que toda garota ama.
Mel e Luna saíram do cinema suspirando pelo galã verde, e de nada adiantou eu dizer que ele era uma folha, e que Ronin, o líder maduro e grisalho do pelotão, era muito mais interessante.
Enquanto nos sentamos para devorar um milk-shake de ovomaltine gigante, teve início a sabatina. Apesar da paixonite de Maria Catarina, o filme chegou ao final, e ela precisou crescer e voltar para casa. A cena da separação foi bem dramática, com ela segurando as mãos do amado até o último minuto. Mas o mais cruel foi o que deixou implícito – o poder de decisão da garota.
Mel e Luna queriam discutir a escolha. Para garotas de 6 e 10 anos, achei que estavam bem precoces. Culpa de Hollywood!
- O que você faria, tia Tessa? – perguntaram.
Maria Catarina voltou para casa, como num sopro. Tentei minimizar a questão.
- Acho que ela não teve muita escolha. A nova rainha a obrigou a partir.
Mentira. Se ela quisesse, podia ter fincado pé. Ela nem tentou.
As meninas não se convenceram.
- Mas, e se você pudesse escolher?
Pensei um pouco.
- Acho que ficaria. Por amor.
Elas sorriram. Era o que queriam ouvir.
Fiquei pasma com a minha cara de pau. Como era fácil falar em tese! “Por amor” não combinava nem um pouco com a mulher que não se cansava de repetir “Amo o Inácio, só não quero ter um filho com ele”. Encolher e mudar de universo, tudo bem. Ter um filho, aí era demais. Se ele me pedisse para usar burca, seria menos absurdo.
As meninas chegaram em casa dizendo que a tia Tessa era muuuuuuuito legal. Inácio me olhou desconfiado.
No dia seguinte, acordaram às seis da manhã. Inacreditável!
- Deixa comigo – Inácio disse, se levantando.
Dormi até mais tarde. Puxa vida, era domingo!
Quando me levantei, Inácio propôs um programa ao ar livre: soltar pipa no parque. Qualquer outra ideia não teria me contrariado mais, mas as meninas adoraram. Nunca tinham feito isso. Na verdade, Maurício não era um pai muito participativo. Ele era do tipo que achava que, por proporcionar conforto financeiro (era um corretor de valores bem-sucedido), não precisava se esforçar muito com as crianças. Eu nunca teria tido filhos com ele (caso quisesse ter), mas Nina pensava diferente.
Enfim, lá fomos nós para o parque, com uma cesta de piquenique a tiracolo. Achei bem “anos sessenta”, mas não disse nada, pois Inácio e as meninas estavam achando o máximo.
Na entrada do parque, compramos as pipas.
- Da próxima vez, faremos as nossas – Inácio disse.
Olhei torto para ele, como quem dizia “que próxima vez?”.
Encontrei uma sombra, debaixo de algumas árvores e diante do lago. Sentei-me na grama e coloquei a cesta ao meu lado. Enquanto Inácio preparava as pipas, saquei meu livro da sacola. Pelo menos poderia aproveitar o tempo e o lugar para ler. O dia estava muito agradável. Ensolarado, com uma brisa fresca.
Li algumas páginas e, quando me dei conta, as pipas já estavam no céu. Inácio orientava Mel e Luna, que sorriam, felizes. Tive vontade de registrar aquela cena. Não soube bem por quê. Provavelmente para enviar as fotos a Nina, concluí. Tirei a câmera da bolsa e disparei várias vezes.
Quando decidiram parar, as meninas estavam suadas e com as bochechas rosadas. Mas o que me comoveu foram os olhinhos brilhantes. Como era fácil entreter aquelas crianças! Por que eu achava tudo tão difícil?
Depois de tomarmos o suco e comermos os sanduíches que Inácio preparou, nos deitamos na toalha xadrez (escolhida por ele, naturalmente) e ficamos, os quatro, admirando as copas das árvores. Neste momento, uma pergunta me assaltou: “será que dá para ser feliz com tão pouco, ou tudo não passa de ilusão de ótica?”. Logo, eu iria despertar e perceber que um dia como aquele podia até ser legal, desde que fosse num final de semana com filhos emprestados, mas que não se encaixava na minha vida? Apostei que sim. E ajudou o fato de eu estar com TPM e, portanto, mais bobona e melancólica. Em outras palavras, completamente fora de mim.
Quando a semana recomeçou, senti que as coisas voltariam aos trilhos. Abandonei a melancolia e vesti minha armadura de novo. Tudo parecia ir de vento em popa, até receber o telefonema da professora de Luna. Ela havia caído no pátio e cortado o queixo.
Peguei a bolsa e saí às pressas do trabalho. Meu Deus, será que o corte tinha sido profundo? Inácio tinha que me ajudar!
Mas não ajudou. Logo naquele dia ele estava enfurnado no bloco cirúrgico operando o ombro de um paciente. Posso lidar com meia dúzia de pontos sem ele, disse a mim mesma, numa tentativa capenga de manter o controle da situação.
Luna estava com a blusa encharcada de sangue e aos prantos quando cheguei à escola. Um curativo improvisado já tinha sido providenciado.
- Eu quero a minha mãe!!! – ela berrava.
- Calma, Luna, a tia Tessa já está aqui – eu tentava acalmá-la, sem me dar conta do ridículo da situação. Sempre critiquei as pessoas que falavam assim com as crianças – “a mamãe está aqui” ao invés de “eu estou aqui”. Parecia que a criança era tapada. E lá estava eu usando o mesmo expediente. Será que eu estava ficando tapada?
Assim que consegui tranquilizá-la um pouco, coloquei-a no carro, junto de Mel, e fomos para o hospital. Lembrei naquele instante de por que achava tudo tão difícil.
Luna foi atendida rapidamente, provavelmente porque fez uma birra colossal, que constrangeu a todos.
- Não quero dar pontos!!! Não quero tomar injeção!!! Não quero fazer nada!!!
O escândalo foi tamanho que uma mulher (intrometida), sentada ao nosso lado, me perguntou:
- Já leu Crianças francesas não fazem manha?
Olhei para ela com cara de poucos amigos. Mania chata dessa mulherada de ficar criticando a educação dos filhos dos outros. Isso sempre me deu um desânimo...
Foram necessários dois enfermeiros para imobilizar Luna, de modo que o cirurgião pudesse dar os quatro pontinhos. Toda a melancolia do dia anterior desapareceu. Aquele piquenique chegou até a ofuscar a verdade, mas agora eu estava ali, diante dela.
Comprei os remédios e as gazes e fui para casa, exausta. Avisei a Inácio que ele faria as trocas de curativos. E, embora ele garantisse que aquilo não era nada e que eu não tinha razões para me preocupar, passei a primeira noite tensa, indo ao quarto de Luna, de tempos em tempos, em uma agoniada vigília.
À medida que os dias avançaram, fui ficando mais relaxada, o que não me fez mudar de opinião quanto ao essencial: definitivamente, eu não estava preparada para aquilo. Eu surtaria com um recém-nascido.
Quando Nina retornou, quase soltei rojões.
- Toma que as filhas são suas – quase falei.
Assim que partiram naquela noite, Inácio sorriu e disse:
- Você se saiu muito bem.
- Até parece!
- Fiquei comovido com o seu cuidado e a sua preocupação com a Luna.
- Se algo acontecesse, Nina me mataria.
- Você sabe que não foi por isso.
- Aonde você está querendo chegar, Inácio?
- Você seria uma ótima mãe, Tessa. Só você não vê isso.
- Não vejo mesmo. Vamos mudar de assunto?
Ele se aproximou e me beijou a testa. Então, saiu da sala.




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No dia seguinte, não trabalhei à tarde. Peguei alguns projetos que estavam em minha mesa e avisei que ia para casa. Ao invés disso, dirigi até Casa Branca e estacionei no centro do distrito. Comprei um sanduíche natural, algumas castanhas e uma garrafa de isotônico. Então, caminhei por uma estrada de terra que dava acesso a uma trilha. Um golden retriever caramelo, simpático e mal cuidado, resolveu me acompanhar. Em certo ponto, adentrei a mata e, após uma hora de caminhada, cheguei à cachoeira. Era um lugar que eu conhecia bem.
 Sentei-me na beira do poço, tirei os tênis e mergulhei os pés na água gelada. Era revigorante! Assim que me acostumei à temperatura, resolvi comer o sanduíche. Meu amigo, que já tinha bebido água no poço, estava estirado no chão. Depois de um tempo, deitei-me ao lado dele. Fechei os olhos e fiquei ouvindo apenas o barulho da água e o canto dos pássaros. Acabei cochilando. Quando acordei, me assustei com a hora e com o fato de estar toda borrada de cocô de pássaro. Inácio me mataria se soubesse daquilo. Ele achava perigoso eu me enfiar na mata, sozinha, daquele jeito. Como medida preventiva, eu mantinha um spray de pimenta no porta-luvas do carro. Contudo, naquele dia, eu sequer lembrara dele. “Vivemos em uma cidade grande”, ele dizia. “O mundo anda muito violento”. Apesar disso, sentia o coração mais leve. Eu precisava daquela pausa.
À noite, sentei diante do computador e detonei os projetos que tinha levado comigo. Isso foi providencial. Assim que comecei a trabalhar, as coisas entraram em foco novamente. Filhos eram sinônimo de suicídio profissional, não adiantava dizer o contrário. Vi acontecer com cada uma de minhas colegas que se aventuraram na maternidade. Ok, talvez seja tudo culpa das feministas, que erraram feio - em vez de se focarem em um mundo mais feminino, escolheram ser iguais aos homens, num mundo masculino. O fato é que essa esquizofrenia tem cobrado o seu preço. Vejo todos os dias o entusiasmo profissional das mulheres que se tornam mães despencar - não tem jeito, elas acabam sendo afetadas pela exaustão. Sim, porque Inácio diz que não é difícil, mas trabalhoso. O que ele não diz é que o trabalho é infinito.
Não consigo me imaginar, após um longo dia cansativo, fazendo malabarismos para extrair das poucas horas antes de a minha criança dormir o tal "tempo de qualidade", atualmente tão badalado. Brincadeiras ao som de músicas clássicas, banhos relaxantes seguidos por massagens terapêuticas e histórias individuais feitas sob medida com adequados temas pedagógicos são apenas alguns exemplos do que uma mãe precisa fazer para se sentir razoável. Fala sério: os princípios democráticos da maternidade atualmente em voga são uma bomba! Antigamente, não rolava todo esse stress...
Não estou exagerando, não. Ouço os comentários das minhas amigas. E sei o quanto elas sofrem com dúvidas existenciais, tais como os valores relativos do purê de batata em comparação com o de inhame.
Já dei também uma boa bisbilhotada no livro do bebê feliz, ou algo do gênero, na mesa de uma colega. Quase tive um troço com aquela tabela de horários de um bebê de seis semanas. Era mais exigente que a minha agenda de trabalho.
Não, não quero nada disso para mim. Quero distância das contrações de Braxton-Hicks, das bombas de leite, dos protetores de seio, das papinhas congeladas e do complexo de culpa da mãe trabalhadora.

O capítulo 5 será publicado na próxima quarta-feira, 30 de outubro.
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Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira e Miriam Porto

Um comentário:

  1. Adorei! Muito divertido e apesar de já ser mãe, de uma menina de 2 anos, se duas, de 6 e 10, caíssem de paraquedas aqui em casa, eu também ficaria doida! kkkkk

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