Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

CAPÍTULO 3


Aquele era o dia em que eu deveria levar Luna ao otorrino. Há quatro meses, ela precisou fazer uma adenoidectomia, e Inácio indicou Rogério, seu colega de faculdade e amigo.

            Nina tinha pânico de cirurgias e relutou muito em concordar com a intervenção, obviamente necessária. Durante a noite, Luna, de 5 anos, não dormia direito nem permitia que sua família – e até mesmo os vizinhos – tivessem uma noite de sono tranquila, uma vez que seus roncos e apneias matavam todo mundo de susto. Seu desempenho escolar acabou sendo comprometido, e foi isso que acabou convencendo Nina.

            No dia da cirurgia, Inácio cancelou seus compromissos e não saiu do lado dela. Só assim Nina ficou um pouco mais tranquila. A presença dele no bloco cirúrgico, ao lado da sobrinha, por alguma razão, fazia minha irmã acreditar que tudo daria certo. Inácio tem esse efeito tranquilizador sobre as pessoas.

            Naquele dia, ela me pediu para levar Luna à consulta mensal pós-operatória. Assim que entrei no consultório, notei um enorme buquê de girassóis na mesa de Rogério.

            - Alguma ocasião especial? – perguntei, curiosa.

            - É meu aniversário – ele respondeu.

            - Eu não sabia. Parabéns! – dei um abraço nele. Presente de alguma paciente? – brinquei, apontando o buquê e lembrando que ele era um solteiro convicto.

            - Foi – respondeu, sem graça. E acrescentou: Algumas pacientes têm verdadeiro fetiche por seus médicos. Inácio que o diga.

            Congelei. Inácio que o diga? Do que ele estava falando?

            Rogério imediatamente percebeu o fora.

            - Quero dizer, todos nós já passamos por isso... - tentou consertar, sem graça.

            Fiquei zonza. Estávamos falando do mesmo Inácio? Porque eu estava com ele há mais de dez anos e nunca soube de nada.

            Sentei na cadeira à minha frente, enquanto uma sombra cobria um de meus olhos. Uma enxaqueca daquelas estava a caminho.

            Rogério deve ter notado que fiquei abalada, porque tentou mudar de assunto várias vezes, mas nada funcionou. Nem quando ele brincou com Luna, como sempre fazia, achei graça.

         - Amígdalas perfeitas, perfiladas, justamente posicionadas! 

            Decidi que, naquela noite, teria uma conversa séria com Inácio. Que palhaçada era aquela?

            Contudo, durante a tarde, não aguentei e mandei uma mensagem para ele.


            Em que mais estou fazendo papel de boba, com cara de samambaia na sombra?


            Hein?


            A gente conversa quando você chegar em casa.


            Tô boiando, Tessa.   


            Não se faça de bobo comigo. Sei que o Rogério já te ligou.


            O telefone tocou.

            - Tessa, o que está acontecendo? Estou no meio de uma consulta.

            - E a paciente tem um fetiche por você?

            - Do que se trata, afinal? – seu tom de voz começou a ficar alterado. Eu sabia quando ele estava prestes a ficar bravo.

            - Já estou sabendo de tudo.

            - Tudo o quê?

            - Conversamos mais tarde. Estou ocupada. E, se quiser mais detalhes, entre em contato com o seu amigo.

            Desliguei.

            Nunca vi uma estupidez tão grande! Se eu tinha alguma vantagem sobre ele, ela tinha ido pelo ralo. Obviamente, ele ligaria para o Rogério e, à noite, já teria uma boa desculpa para mim.

            Mas não foi o que aconteceu. Eu estava no banho quando ele chegou. Ao sair de lá, encontrei-o no escritório, sentado diante do computador.

            - Senta aqui, Tessa – ele apontou a cadeira ao seu lado.

            Então, pigarreou, antes de dizer:

            - No final do ano passado, uma paciente me procurou. Ela estava com fortes dores no ombro esquerdo. Um colega tinha sugerido uma cirurgia, mas ela queria ouvir outra opinião.

            Fez uma pausa.

            - Pedi exames e acabei concluindo que valia a pena tentar um tratamento antes de submetê-la a uma intervenção. Então, ela começou a ir ao consultório semanalmente durante um tempo.

            - O que você fez com ela? – perguntei, atônita.

            Ele estreitou os olhos e respondeu, num tom cortante:

            - Aplicações, obviamente. O que pensou?

            Não disse nada.

            Ele prosseguiu:

            - Tudo ia bem, ela já estava melhor, até que, um dia, do nada, ela me trouxe umas cartas. Fiquei sem entender. Ela pediu para que eu as lesse, ali mesmo. Parecia um diário, algo meio confuso. Li por cortesia. Mas, a partir de certo ponto, percebi que ela tinha escrito para mim.

            - Como assim?

            - Durante aquele período, ela fantasiou uma relação que não existiu e registrou tudo. Por fim, resolveu me mostrar.

            - O que você fez?

            - Com muito tato, expliquei a ela que tudo aquilo não fazia o menor sentido e a encaminhei a outro colega da clínica, o Carlos, para que desse prosseguimento ao tratamento.

            - E então?

            - Achei que o problema estava resolvido. Mas, algum tempo depois, recebi um e-mail dela, com o conteúdo das cartas e outras notas mais recentes.

            - O que você fez?

            - Não fiz nada. Ignorei.

            - E ela não te procurou mais?

            - Não.

            Olhei bem para ele, para ter certeza de que dizia a verdade.

            - Onde estão as cartas que ela te entregou? - perguntei, por fim.

            - Rasguei e joguei fora no mesmo dia.

            - Por que não me contou nada?

            - Para quê? Para te deixar chateada? Para encher sua cabeça de minhoca?

            - E como o Rogério sabe?

            - Comentei com ele.

            - Para se vangloriar?

            - Claro que não, Tessa. Um dia, o assunto surgiu. Foi só isso.

            - Então, as pacientes estão caindo em cima de você?

            - Desde que nos casamos, essa foi a única vez que algo assim aconteceu comigo.

            - Algo assim?

            - Uma abordagem direta.

            - Ah! E indireta?

            - Aí é outra história...

            Tive vontade de arremessar um porta-retratos nele, mas não o fiz porque era a foto do meu pai.

            - Quero ver essas cartas.

            - É o que estou procurando aqui no computador. A mensagem deve estar na lixeira.

            Ótimo! Eu esperava mesmo que estivesse na lixeira.

            Depois de um tempo, ele a encontrou. Irene era o nome da mocreia.

            - Quantos anos ela tem?

            - Uns 40, pelo que me lembro.

            - Pelo menos, é mais velha que eu... – suspirei.

            - Que diferença faz?

            Muita diferença! Era bem mais difícil concorrer com uma garota de 20, jovem e no auge da fertilidade.

            Mas, e se ela fosse lindíssima? A irmã gêmea da Carla Bruni?

            - Ela era linda?

            - Não, Tessa, não era linda – respondeu, pacientemente. Mas era bonita.

            Estreitei os olhos.

            - Você é mais – ele acrescentou.

            Em seguida, abriu o arquivo.

            - Você realmente quer ler isso?

            - Quero.

            - Foi o que pensei – disse, mandando imprimir o texto.

            Assim que a impressora cuspiu os papéis, eu os dobrei e os guardei na minha agenda.

            Estava saindo do escritório, quando Inácio segurou a minha mão.

- Eu amo você, Tessa – disse, com sinceridade nos olhos.


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Mais tarde, naquela noite, sentei-me na poltrona da varanda, com uma caneca de chá de erva-cidreira, e comecei a ler as cartas de Irene. Nina chamaria isso de uma atitude masoquista, mas eu precisava saber o que ela tinha escrito para o meu marido. Nunca fui o tipo de pessoa que busca o sofrimento, a humilhação, ou neles se compraz (muito pelo contrário), mas sempre gostei de saber onde estava pisando.


            “De antemão, peço desculpas se algum embaraço causar...


            21 de novembro:


            Decidi escrever. Abrir as portas – sempre tão fechadas – e me acolher.

            Do que eu mais gosto em você? Da mistura.

            Do yin e do yang. Da doçura e da virilidade.

            Do olhar que me abraça e me despe.

            Da ternura, do cuidado, do carinho com tudo e com todos à sua volta.

            Gosto da sua fala mansa, da sensibilidade, da competência.

            E do sorriso. Ah! O sorriso...


            Você entrou em minha vida sem pedir licença.

            Era 8 de outubro.

-        Oi, tudo bem? Sou o Inácio.

            Nada sabia a seu respeito. Apenas o seu nome e a sua profissão.

            Não usava aliança. Ou meus olhos não quiseram ver?

            Mais alguns dias, a constatação: a aliança estava lá.

            Dois passinhos atrás. Balde de água fria.


            E a vida continua.

            Tentei não pensar mais no assunto, mas nossos encontros semanais, no consultório, mantinham acesa a chama da admiração.

            Conversa daqui, conversa dali, e outras características vieram à tona.


            A atração mútua é evidente – ouso acreditar.

            Mas não se toca no assunto.


            Hoje cheguei a pensar numa atitude mais atrevida. Faltou-me coragem. Melhor dizendo, fui suficientemente corajosa para entender que não era o momento. Eu, que tenho passado os dias ouvindo sua voz, sentindo seu cheiro e imaginando sua boca, guardei meu sonho. E voltei para casa com o desejo a tiracolo.


            22 de novembro – madrugada:


            Não me canso de pensar em suas inúmeras qualidades. Divertido, bem-humorado, sagaz, generoso, dedicado, trabalhador, disciplinado, organizado. Seu riso solto desperta em mim uma deliciosa sensação de cumplicidade.

            Ama a natureza, cultiva a saúde. Dotado de sofisticada simplicidade, é autêntico, sincero, discreto e elegante, mormente no agir. Sedutor em cada gesto. Sem pretender sê-lo.

            Curte a vida, caminha, nada, viaja.

            Viajante, terei algum dia o privilégio de estar ao seu lado, contemplar com seus olhos? Aguardo.

            Poderoso, torna supérfluo meu respirar. Conto os dias, debulho as horas. O veludo em sua voz me extasia.

            Procuro manter a pose. Ambos sabemos, tacitamente, que é prudente manter distância. Mas as fagulhas no olhar nos denunciam.

            Valerá a pena manter o segredo? Preservar a distância? O futuro dirá. De uma coisa estou certa: perder não é o caso, porque não se perde o que nunca se teve. Mas, se não rolar, que seja só por ela. Afora isso, reivindico o lugar de primeira da fila.

            E tenho dito.


            22 de novembro:


            Começam a perceber. Colegas de trabalho perguntam.

-        Alguma novidade?

            Chego mais tarde. Falta concentração. Perco o foco.


            Há dias, uma amiga desconfiou do meu interesse. E comentou. Gelei. Foi como se uma toalha, única peça a encobrir meu pudor, tivesse sido puxada. Exposta, lívida, me pergunto:

-        Como? Eu? Tão reservada... dando uma bandeira dessa?

            Por alguns instantes, emudeci. Não confirmei. Nem neguei.

            Aleguei que não acreditava que você tivesse olhos para mim.


            Ontem você percebeu certa tensão.

-        Você está tensa.

            Eu ria. E ria mais, num misto de nervosismo e excitação, na tentativa de ocultar o que de fato sentia. Em vão.

            Observador, você desfere:

-        O que está acontecendo? Tem alguma coisa diferente.

            Me seguro para não te abraçar.

            Beijar. Adoraria. Mas agora seria um erro. As sensações confundiriam seus sentimentos, turvariam seu discernimento.


            Revelo-me? Ainda não.


            23 de novembro:


            Soa o alarme de mensagem. Aos pulos, meu coração sabia que era você, atencioso, em resposta à minha mensagem de alguns segundos atrás.

            Tomo água. Café. Caminho pelos corredores, procurando sincronizar as batidas do meu coração com o ritmo dos passos.

            Mais alguns dias e meus olhos pousam nos seus.

            Ainda ofegante, tento retomar o trabalho. O texto me fita. Leio e releio. As palavras recém-digitadas não fazem sentido.

            Vontade louca de compartilhar com você. Mas não tenho esse direito. Não agora. Você precisa de tempo. Até quando resisto? Me inflamo. Não há nimesulida que dê conta. Minhas têmporas latejam. Saber esperar não é o meu forte. Amo a vida. Viciada em autossuficiência, anseio o prazer.


            24 de novembro – madrugada:


            Acordo no meio da noite. Respiração curtinha. Sobressaltada, inicio estas linhas. Durante aproximadamente uma hora, percorro minha memória onírica, agarrando-me a cada detalhe e aprisionando as lembranças na ponta do lápis.

            Sonhava com você.

            Cena 1 – Olhares trocados, sorrisos cúmplices, diálogos curtos, troca de ideias. No mesmo ambiente, repentinamente começamos a dançar. Encaixe perfeito. Absoluta sintonia, como se dançássemos juntos desde sempre. Fechamos os olhos, aguçando os sentidos e intensificando as sensações. Continuamos dançando, dançando... Termina a música, e nos entreolhamos. Realizados, plenos, nada nem ninguém à nossa volta importa.

            Cena 2 – Um grupo de pessoas conversa em torno da mesa onde há pouco estávamos. À minha frente, você. E à minha esquerda, sua esposa. Sorria para você. Corpo inclinado sobre a mesa, dava-lhe beijocas e falava sobre o quanto eram felizes, enfatizava o quanto viviam bem. Você se mantinha imóvel, expressão congelada. Olhava-me firmemente nos olhos, como se me dissesse que ela queria apenas me impressionar.

            Cena 3 – Decido me dirigir ao local onde sua esposa trabalha. É uma casa antiga. Porta aberta, entro sem me anunciar. No primeiro ambiente, encontro duas mulheres. Cumprimento-as e passo ao ambiente seguinte, onde me deparo com um grupo de conhecidas. Cumprimento-as intimamente. Algumas mulheres se aproximam. Entre elas, sua esposa. Digo que vim conhecer o seu trabalho, que muito a admirava. Intimamente, sabia que não era esse o motivo. Queria vê-la de perto, observá-la, olhá-la nos olhos, perscrutar sua alma. Era como se eu quisesse me aproximar dela para, indiretamente, estreitar minha convivência com você.

            Amanhece. Volto pra cama. Meu travesseiro me abraça.

            Começa a doer. Atitudes reprimidas, coração oprimido, espremido no peito.

            Preciso me expressar. Ou esquecer. Só assim vai passar.


            25 de novembro:


            Em meu quadro mental, recupero a imagem do seu sorriso, reflexo da transbordante alegria de seu espírito.

            Tive a ilusão de que, colocando meus sentimentos no papel, compreenderia o que estava acontecendo e minha razão seguiria me norteando. Ledo engano. Passados alguns dias do início desse registro, o sentimento assumiu proporção absurda. Vejo-me agora sendo levada. E nem sei para onde. Só sei que você habita cada instante dos meus pensamentos. Sem hora nem lugar, ardo em desejo.

            Pensei que abria uma porta. Eram comportas. Inesperadamente, dei vazão a uma torrente de emoções e sensações que, há muito adormecidas, vieram à tona com uma intensidade quase incontrolável.

            Te quero.


            28 de novembro:


            Sua atitude não me surpreendeu. Pelo contrário. Foi absolutamente coerente com seu caráter. Também por isso sigo te admirando.

            Fato curioso: A caminho do consultório, nervosa, ansiedade em alta e autoconfiança em baixa, procurava no rádio uma música para me acalmar. Quando, por fim, decido por uma estação, uma voz feminina canta: “I don´t want anybody else. When I think of you I touch myself”. Ao fundo, suspiros. Não podia acreditar no que ouvia! Intervalo: propaganda de motel e, na sequência, de um empreendimento imobiliário em Brasília. Confesso que não me acalmou muito. Nem por isso perdi o humor.

            Nos dias e horas que antecederam sua leitura do relato, minha reação era uma incógnita, mesmo porque estaria intrinsecamente relacionada com a maneira como você receberia minha confissão. Como não poderia deixar de ser, você me acolheu. Com gentileza, cavalheirismo e uma generosa dose de humor. Graças a você, não me senti exposta, nem vulgar, nem ridícula – grande preocupação que carrego comigo desde sempre, em virtude de meu exacerbado senso de autocrítica.

Este aqui sou eu? – você perguntou, com um ar de surpresa quase infantil. E quem se surpreendeu fui eu. Nunca ousei revelar-me tão explicitamente. E contra todas as odes, sentia-me segura, amparada. Você estava ao meu lado.

            Chove. Chove muito. É o céu chorando por mim as lágrimas que não me atrevo a derramar. Tenho de segurar a onda. Como sempre. Ser forte. Até quando?

            Por vezes, tinha vontade de ser dessas mulheres frágeis e fúteis, que despertam nos homens o instinto de proteção. Não é fácil ser forte. E sozinha.

            Queria reviver nossa tarde. Cada palavra, cada olhar. Cada segundo foi extremamente importante para mim. Mantinha-me atenta entre você e o texto, a fim de identificar exatamente em que trecho da leitura você estava.

            Sinto-me feliz, sim. Principalmente por ter sido você o alvo da minha paixão. Não sei o que acontecerá amanhã. Nem depois. O importante é que você fez reviver em mim a crença na minha capacidade de amar.

            Por favor, não mude. Não mude seu jeito de ser comigo. Se não restar alternativa e eu tiver de me desapaixonar, que seja num exercício solitário. Não deixe de ser “o cara”. O que quer que aconteça, você terá sido o responsável por eu acreditar que ainda há pelo menos um homem capaz de arrebatar meu coração.


            30 de novembro:


            Gentileza.

            Você pediu à sua secretária que me telefonasse hoje para saber se a consulta com o Dr. Carlos já estava agendada. Pequenos gestos como esse me fazem sentir cuidada com a delicadeza com que se manuseia um raro e precioso artefato.

            Reflito.

            Não tolha suas atitudes. De nada adiantaria. Você existe. E o mero pensar em você alimenta meu espírito, nutre meu corpo.

            O coração bate fora do peito.


            4 de dezembro:


            Ético, correto, fiel a seu juramento.


            “(...) Conservarei imaculada minha vida e minha arte. (…) mantendo-me longe de (…) toda a sedução, sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens (...)”.


            Não fiz juramento algum, mas me sinto no dever de apoiá-lo e ajudá-lo a encontrar forças para resistir. Sei o quão caros são os seus princípios e compreendo o quanto é importante para você honrar Hipócrates. Não fosse por isso...


            São claras as evidências de que você fica dividido entre a paciente que represento e a mulher que sou. Assim como em mim, em você habitam dois seres distintos – o médico e o homem – que, dissociados, travam verdadeira batalha interna quando confrontados com a mulher.


            Um não deve, o outro quer.

            Por quanto tempo conseguiremos resistir?

            Não temos resposta para o amanhã.


            Se para mim é difícil, não deve ser fácil para você. Você tem se esforçado tanto quanto eu. Ou mais. Será que realmente precisamos passar por tanta provação?


            Ainda que eu tivesse aberto mão de ser sua paciente para vivenciar essa paixão carnalmente, sem o fantasma do juramento a nos rondar, o que fazer com a aliança que ainda existe entre nós?

           

            Cronologicamente, dois meses não é muito tempo. No entanto, nesse curto período, desenvolvemos e cultivamos amizade sincera, imenso carinho e profundo respeito mútuo, que nos impedem de agir inconsequentemente, pois os efeitos poderiam ser danosos para ambos.


            O sentimento é mais evidente do que eu imaginava.


            16 de dezembro:


            Bateu o cansaço. E, junto com ele, senti uma vontade enorme de chorar. Chorar o beijo perdido, o abraço interrompido, os momentos não vividos.

            Ressaca de euforia. Como num “insight”, iluminou-se minha consciência. E acabo de descobrir que minha agitação, nos últimos dias, nada mais era do que a vã tentativa de fugir de você, de fingir que meu coração não havia sido tocado tão profundamente. Iludia-me ao brincar, ao rir e ao fazer piadinhas maliciosas, imaginando que dessa forma estaria a salvo do sofrimento. Tolinha.

            A cada rápido encontro nos corredores da clínica, aumenta o desejo de estar por mais tempo ao seu lado, de conversar como antes, de olhar cada vez mais fundo nos seus olhos.

            Há muito por falar. E por ouvir. Mas as oportunidades são poucas. Vontade de contar minha vida, de saber da sua. De compartilhar meus sonhos e de fazer parte dos seus. Vontade de me abrir em livro. De me colocar por inteiro em suas mãos e dizer: “Faça o que quiser comigo. Confio em você”.

            Como pude acreditar que eu deteria o controle sobre tantas emoções? Não vai passar assim tão facilmente.

            Há cinco dias tenho vivido em falsa euforia, extraindo energia sei lá de onde. Pouco sono e um bocado de espumante.

            De repente, o torpor. O Frontal já faz efeito.


            17 de dezembro:


            Estou partindo. Sinto-me na iminência de provocar um aborto. Decisão difícil, triste, contra a minha vontade, mas absolutamente necessária.

            Acho que até então, inconscientemente, tentava poupá-lo do peso da responsabilidade de me ter conquistado. Agora entendo que não me apaixonaria pelo vazio.

            Você tem, sim, uma parcela de responsabilidade.

            Reitero. Não me apaixonaria pelo vazio.

            Tenho plena consciência de que sou uma mulher desejável. E não imaginaria coisas, se elas realmente não existissem.

            Talvez por necessidade de autoafirmação, por vaidade ou por insegurança, pela incerteza conjugal (?), ou apenas para testar seu poder de sedução, você tenha, inconscientemente, alimentado meu sonho.

            Com raríssimas exceções – quisera eu você fosse uma delas, os homens não se separam. Quem se separa são as mulheres. Quando querem. E, pelo que percebo, a sua não quer.

            É forte a dor. Ir embora. Permitir que sentimento tão jovem e cheio de promessas simplesmente se desmanche.

            Não sei se encontrarei um homem à sua altura.

            Fato é que preciso me afastar. Pelo bem de nós dois. Para te permitir espaço. E para me poupar da desintegração – será que somos letais um ao outro?

            Estou partindo. Não para sempre, uma vez que continuarei indo à clínica. Mas serão encontros superficiais, longe das quatro paredes que nos preservavam a intimidade e nos protegiam dos olhares atentos dos outros.

            Talvez eu seja mais sensível do que supunha. Preciso respeitar meus limites. Não posso exigir tanto de mim mesma. Preciso pensar na minha filhinha também. Desde o divórcio, ela anda tão carente...

            Se num momento rimos, nos divertimos, se nos provocamos deliciosamente, no instante seguinte temos de nos conter tanto e tão intensamente, contrariando todos os meus desejos, que a tensão se revela em “trigger points” espalhados pelo meu corpo. Não faz sentido.

            Por tudo o que vivi, e principalmente pelo que senti nos últimos meses, ainda que apenas em minha fantasia, obrigada.

 Irene"

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            Imaginei que a leitura das cartas de Irene fosse me fazer espumar de raiva, mas não foi o que aconteceu.

            Antes de mais nada, não consegui odiá-la, por incrível que pareça. Em alguns momentos, até compreendi os sentimentos dela. Eu também me encantei com Inácio quando fui ao consultório pela primeira vez. Ele é sedutor por natureza, ela tinha razão. E acredito que ele nem sequer tenha consciência disso. A grande diferença é que, naquela época, eu tinha 22 anos e ele era solteiro.

            Era óbvio que nada de concreto tinha acontecido entre eles, mas isso não diminuía a minha apreensão. Eu duvidava de que o juramento ético é que o tinha impedido. No nosso caso, como ele admitiu algum tempo depois, houve atração desde o primeiro instante, e, assim que deixei o consultório naquele dia, Inácio começou a imaginar formas de se encontrar comigo fora dali. E foi isso que o motivou a se matricular na mesma academia que eu. Contudo, eu precisava ter certeza de que o que o impediu fora o sentimento que nutre por mim, e não a formalidade do casamento em si, com o dever recíproco de fidelidade.

            Em alguns momentos da leitura, senti pena de Irene. Não chegou a ser empatia, mas foi algo parecido. Pelo que entendi, ela tinha se divorciado há pouco tempo. Devia estar carente e sozinha. No instante em que encontrou um homem disposto a ouvi-la e cuidar de suas feridas (ainda que físicas), se apaixonou. É claro que Anita diria que tudo se resume à sua “teoria do jaleco”, ou seja, há mulheres que não podem ver um homem de branco que se apaixonam. Mas acredito que, no caso de Irene, seja mais complexo que isso.

            Bem, preciso admitir que, a par da compreensão, também senti medo, a certa altura. Medo de ela ser desequilibrada a ponto de me procurar, fora de seus sonhos, e tentar me eliminar de uma vez por todas. Exagero? Podia ser, mas todos os filmes de suspense e livros policiais com que me deliciei nos últimos anos desenharam um quadro nada promissor em minha mente, e cheguei a me perguntar se não seria ela uma daquelas psicopatas obcecadas, ao estilo Glenn Close, em Atração Fatal.

            Mas, de repente, me lembrei de que ela era mãe. E, se por um lado, isso diminuiu a minha apreensão quanto ao fato de ser uma psicopata (não sei bem por quê), por outro, me encheu de insegurança. E se Inácio tivesse ficado balançado com isso? Puxa, ela era mãe! Ela quis ter um filho. Poderia muito bem ter outro...

            Aí pensei na escrita dela. Era uma mulher culta, ilustrada. Não era qualquer uma. O que significava que até podia ser maluca, mas era inteligente. Eu preferia mil vezes que fosse burra. Inácio nunca admitiu, mas eu sabia que ele não admirava mulheres que não tinham um mínimo de “bagagem cultural”. E ela tinha.

            No entanto, nada daquilo tinha relevância quando outra questão era posta. Ele diz que ela fantasiou tudo. Ela tem certeza de que ele a incentivou. Eu nunca saberia o que, de fato, aconteceu. Apesar disso, uma pergunta não me saía da cabeça: Qual era a minha parcela de responsabilidade nisso? Ou, em outras palavras: A minha recusa em ser mãe estava indiretamente fazendo com que Inácio estivesse começando a olhar em volta?


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            Era uma da manhã, e eu ainda estava sentada na poltrona, com a caneca de chá frio ao meu lado.

            Ouvi os passos de Inácio na sala, mas não me virei. Ele pigarreou. Continuei imóvel.

-        Você não olhou para mim ainda.

            Virei-me e o encarei.

-        Inácio, em algum momento, você deu esperanças a essa mulher? - perguntei, com a voz embargada.

-        Nunca, Tessa – afirmou, resoluto. Tudo não passou de um mal entendido.

-        Mal entendido? - odiei aquela expressão.

-        Ela fantasiou – ele emendou.

-        Mas você se preocupava com ela, mandava mensagens, pedia à secretária para ligar...

-        Antes de tudo, ela era minha paciente, Tessa.

            Eu não podia discutir com ele a esse respeito. Ele estava certo. Por mais que me doesse, ele agiu corretamente. Inácio sempre fora um médico dedicado. Era uma espécie de diferencial que ele tinha. E talvez tenha sido justamente isso que fez Irene confundir as coisas. Talvez...

-        Vamos deitar – eu disse, me levantando e levando a caneca para a cozinha.


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Se Inácio tinha razão, a imaginação de Irene não era fértil, mas delirante. E preferi acreditar que ele tinha razão, pois isso o enquadrava numa categoria muito conveniente para mim – o de “homem da ficção”.

Eu vinha lendo o livro da Leila Ferreira, em doses homeopáticas, desde o lançamento. Achei uma tremenda coincidência o fato de, dois dias depois de ler o relato apaixonado de Irene, me deparar com uma crônica, cujo título era “Homens que nos fazem felizes”.

Segundo a autora, existem homens que amamos sem jamais termos tido contato com eles. São homens que nos fazem sonhar, sentir alegria sem motivo, ter ondas de calor e de frio, viajar por todos os continentes, suspirar, acreditar no amor, nos príncipes, nos castelos, no “felizes para sempre”. Ela cita Richard Gere, em Uma linda mulher. Ótimo exemplo! Conta também uma experiência pessoal, que acabou me fazendo pensar em Irene: ela tinha acabado de sair de um período de depressão severa. Passara alguns meses na casa de sua mãe, em Araxá, onde começou a assistir a uma novela. Era uma tentativa de mostrar interesse pela vida e deixar a mãe menos preocupada. Foi então que ela caiu de amores por José Mayer. Durante os minutos em que ele estava em cena, ela delirava. Cada sorriso era um sopro, uma dose de oxigênio. Depois de passar meses sem sentir interesse por nada, essa paixão fictícia era um sinal de que voltaria a ser capaz de viver paixões reais – ou de viver, simplesmente.

Percebi que a paixão de Irene por Inácio tinha a mesma conotação. Foi a forma que ela encontrou de se reconciliar com a vida, após o divórcio. Embora eu preferisse que ela tivesse escolhido um galã de TV ao meu marido, eu era capaz de entender – também era perita em estratégias de salvamento.

No quesito “homem da ficção”, já fui apaixonada pelo Hulk (antes da transformação, em uma antiga série de TV), pelo Guilherme Arantes, por um dos Menudos e pelo Stallone, mas quando era criança.

Depois que fiquei mais velha, comecei a eleger homens reais. Ou melhor, a idealização que fazia deles. O finge-que-é-real, que não sobreviveria a um fim de semana juntos. Um dos escolhidos, no final da minha adolescência, foi o professor de ginástica localizada da academia que frequentava. Não demorei muito a descobrir que ele era um “ogro”, extremamente mal-humorado e mulherengo. A gota d’água foi o dia em que o ouvi reclamando de uma garota, possivelmente sua namorada, com um personal trainner: “Não posso ser a porcaria do Romeu o tempo todo”. O amor evaporou na hora.

Se você me perguntasse quem seria um “homem da ficção” para mim hoje, não teria dúvida: John Mayer - John, não José. Acho aquele visual de instrutor de ioga um charme, sem falar no talento indiscutível. Seus solos de guitarra balançam o meu coração (meu e do Maracanã inteiro, eu sei). E, já que entramos na seara musical, vale lembrar que, na minha Gotham City, Chris Martin também daria um belo Batman.

Enfim, acho que isso é necessário. E já me perguntei, várias vezes, se os homens também têm isso, se ficam pensando febrilmente em alguém, como nós, mulheres. Sei lá, são tão diferentes...

Sei que é ridículo acreditar no homem ideal, mas que mulher não acredita? Só que a maioria, provavelmente, guarda para si. Bem escondidinho. Fazendo uma adaptação de Ferreira Gullar (e correndo o risco de cometer uma heresia), eu diria que a ficção existe porque só a vida não basta.

Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Anita Lima, Flávia Brescia, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira e Miriam Porto

O capítulo 4 será publicado na próxima quarta-feira, dia 23 de outubro.
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