Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CAPÍTULO 2


     Vamos lá. Às razões pelas quais não quero ter filhos. Você deve estar se perguntando, não é?
     Para começo de conversa, gosto muito de ficar sozinha. Não o tempo todo, é claro, mas prezo meus momentos de solidão. Isso significa que o companheiro ideal para mim é um homem que também curta ficar a sós consigo mesmo. Felizmente, Inácio é assim. Ele entende a minha “solidão”.
     Essa é a primeira das minhas razões. Como ficar a sós quando se tem filhos pequenos? Durante anos, Nina, minha irmã, mal conseguia ir ao banheiro. Ela brinca dizendo que seu intestino acabou ficando preso pelo tanto que precisou segurar. Não me imagino nessa situação. Meus momentos a sós são uma espécie de oxigênio. Sempre disse a Inácio que precisava de três coisas para viver: água, comida e oxigênio – este último, o alimento da alma.
     Preciso do tempo que dedico a mim mesma. A minha introspecção é a minha salvação. Gosto de fazer longas caminhadas, sem ter hora para voltar. Nelas, entro em contato comigo mesma, ausculto o meu sentir, faço reflexões que seriam impossíveis em outra circunstância. Não sei precisar quantas vezes fugi por trilhas inóspitas, em busca de algo que estava faltando. A natureza é sempre a coadjuvante perfeita.
     Gosto também de mergulhar em uma leitura. Não foram poucas as vezes em que só saí debaixo do edredom, durante todo o final de semana, para ir ao banheiro e comer. Inácio chama isso de “porres literários”. Contudo, ele não se importa. Sim, nosso casamento não é nada ortodoxo, e eu adoro isso.
     Arrepio só de imaginar a possibilidade de não poder mais fazer alguma dessas coisas. Como eu sobreviveria?
     É claro que já me perguntei, várias vezes, se, por pensar (e sentir) dessa forma, eu não seria uma egoísta patológica.
     Bem, egoísmo à parte, a verdade é que nunca senti necessidade de ser mãe. Na infância, enquanto minhas amigas passavam horas brincando com suas bonecas, eu enjoava delas rapidamente. Aquela história de papinha, colocar para dormir, etc., não me prendia por muito tempo. Eu achava que havia coisas mais interessantes para se fazer.
     Por isso, acredito que o tal “relógio biológico” não faz parte de mim. E se, algum dia, ele tocou, eu não escutei. Não entendo o vazio que muitas mulheres costumam dizer que sentem. Não sinto falta de ter filhos. Na verdade, não me sinto muito à vontade com crianças também. Amo minhas sobrinhas, Mel e Luna, mas acho que sou um fiasco com elas. Nunca sei direito como conversar com crianças, muito menos brincar (sou péssima para brincar, não consigo me envolver naquele universo imaginário infantil).
     Além disso, prezo também a minha liberdade de ir, vir e dormir. Quantas vezes eu e Inácio decidimos fazer uma viagem de última hora? É tudo muito simples, desde que não existam crianças nessa equação.
     E dormir é um verbo que é extinto da vida de uma mãe. Nina passou anos com olheiras, reclamando que não sabia mais o que era uma boa noite de sono (isso porque ela ama ser mãe). Diz que já dormiu em pé, certa vez.
     Preciso de muitas horas de sono; oito, no mínimo. Não é frescura, é uma necessidade fisiológica. Sei que Inácio teria a maior boa vontade em me ajudar nesse sentido, mas ele não poderia me suprir em todos os aspectos, poderia? Nunca vi um pai se levantar de madrugada para amamentar, aliás, outro ponto que me desmotiva. Não sei se gostaria de amamentar um bebê. Para falar a verdade, acho bem esquisito. Talvez eu optasse pela mamadeira. Mas aí já sei que seria criticada pelo resto do mundo. Por falar nisso, Sartre tinha toda razão: o inferno são os outros. E a maternidade parece que potencializa a tendência alheia de se imiscuir na vida das pessoas.
     Temo pelo meu relacionamento com Inácio também. Nós nos damos muito bem. Tudo se ajusta com perfeição (se é que isso existe) entre nós. Um bebê iria interferir, não tem jeito. E nossa vida sexual nunca mais seria a mesma. O amor pode até não acabar com a chegada dos filhos, mas tenho certeza de que o desejo declina.
     Além do que, acho que filhos custam caro, envolvem risco, trabalho e preocupação, aniquilam a vida social de qualquer casal, sem dizer que a gravidez é um atentado estético contra o corpo da mulher, e a maternidade é um atentado à carreira profissional (eu adoro a minha, é importante dizer).
     Egoísta, ambiciosa e estranha – já fui rotulada com todos esses adjetivos. Bem, no meu ponto de vista, egoísta é quem tem um filho e depois não tem tempo para ele. É preciso ter tempo para ser mãe. Não acho justo ter uma criança e, em seguida, terceirizá-la. Pôs um filho no mundo, tem que estar disposto a se doar. E preciso dizer que odeio aquela história de que é necessário ter filhos para ser amparado na velhice. Quer egoísmo maior do que esse? Em quem se está pensando nesse caso?
     Abro aqui um parêntese para dizer que um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Michigan com seis mil mulheres, com idades entre 50 e 60 anos, revelou que ter ou não ter filhos não tem efeito relevante no bem-estar psicológico nessa faixa etária.
     Por tudo isso, tenho convicção de que ninguém tem obrigatoriamente que ser pai ou mãe. Se é isso que deseja, deve fazer essa opção livremente.
     Hoje, o paradigma é outro. Até pouco tempo atrás, a maternidade não era algo questionável pelas mulheres. Pelo menos, não abertamente. Não era uma opção. Havia a ideia de que um filho é que faria a mulher se sentir completa, feliz e realizada. É como se a maternidade fosse a garantia de tornar alguém melhor, mais sensível.
     O instinto materno foi demolido há muito por Elizabeth Badinter. Sim, ele pode existir entre os animais, mas, com o ser humano, é diferente. Até Inácio concorda com isso. Segundo ele, não há instinto materno, isso é um comportamento adquirido. Pelo que me explicou, do ponto de vista biológico, a visão instintiva não encontra muito eco. As premissas do instinto materno nunca foram comprovadas. Em suas palavras, “a interação entre mãe e filho é mais dinâmica do que isso. Ela se desenvolve e se transforma, e o vínculo é naturalmente ajustável”. Se ele estava tentando me convencer de algo, não posso afirmar. Mas reconheço a enorme distância que nos separa do reino animal. Ter uma prole planejada, por exemplo, já nos diferencia deles, cujo instinto faz com que tenham grande quantidade de descendentes, com os quais não estabelecem vínculo afetivo.
     Ser mãe, para mim, envolve questões como estabilidade emocional, situação financeira, capacidade de lidar com rotina e vida pessoal, profissional e amorosa, entre outros. E é aí que a coisa complica.
     A antropóloga Mirian Goldenberg já afirmou que falar de instinto aprisiona as mulheres ao papel de mãe. E por acaso há algo de errado em não querer ter filhos? Será que toda mulher nasce programada para ser mãe? Ou essa é uma ideia culturalmente construída? Assim como o mito de que apenas as pessoas que constituírem uma família com filhos serão felizes...
     As pressões externas e internas nos levam a acreditar que não há escolha. E não querer ter filhos é uma escolha legítima, no meu ponto de vista. Mas preciso dizer que são as próprias mulheres as primeiras a pressionar... Não esqueço aquele episódio, em 2007, quando a senadora democrata da Califórnia Barbara Boxer atacou a secretária de Estado Condoleezza Rice, dizendo que, por ela não ter filhos nem família, não pagaria nenhum preço pessoal pelo envio de mais de vinte mil soldados americanos ao Iraque. O que pode ser entendido como uma variante de “quem não tem filhos não pode compreender o que, nós, seres humanos privilegiados, entendemos”.
     Sei que a francesa Corinne Maier foi acusada de apologia com o livro Sem filhos – 40 razões para você não ter, mas que alguns pontos interessantes foram abordados por ela, isso foram. E eu realmente acho muito pior me arrepender de ter tido filhos do que de não ter tido.
     Não confundo maternidade e feminilidade, como muitas pessoas fazem. O fato de não me sentir vocacionada a ser mãe não tem nada a ver com a minha feminilidade. Posso, sim, ser mulher de forma plena abdicando da maternidade.
     Enfim, esse roteiro de vida não foi feito para mim. E eu poderia colocar um ponto final aqui e deixar as coisas como estão (ou como são). Mas, por uma questão de coerência, e talvez também de franqueza, me obrigo a examinar mais uma questão, a mais delicada de todas. Aquela que Inácio acredita ser a mais importante. Eu tenho minhas dúvidas...
     Não ter filhos é, segundo ele, uma forma de ser poupada dos sustos e do medo. O mais “feioso” dos meus medos é o do parto. Estremeço só de imaginar um parto normal, com anestesia. Não posso nem ouvir falar no tal “parto natural”. Se as celebridades acham o máximo, eu não acho. Tenho medo da dor e não me imagino com a vagina dilatada daquela forma. Para isso, obviamente, Inácio tem a solução perfeita: “faz uma cesariana, então”. Ok, é uma saída. Mas quem faz cesárea não sofre com as críticas das naturalistas? Não entra nas estatísticas do Ministério da Saúde? Pois é, nada é tão simples assim...
     Agora, falemos do outro medo, aquele que habita o subconsciente, segundo meu marido. “Você não quer repetir os erros do passado. Pessoas traumatizadas pela separação dos pais ou pelo abandono (no seu caso, os dois), não querem ter filhos para evitar que venham a sofrer as desilusões por que passaram”, ele resumiu, certa vez.
     É óbvio que a experiência com a minha mãe não conta pontos a favor da maternidade, mas não sei até que ponto isso é determinante. Ela sofreu de depressão pós-parto grave. Não os famosos baby blues, que acometem grande parte das mulheres. O caso dela era seriíssimo. E, naquela época, não havia muitos médicos aptos a diagnosticar e tratar uma mulher nessas condições. Enfim, ela ficou péssima após o nascimento de Nina e demorou uns seis meses para se recuperar. Decidiu, então, que não teria mais filhos, mas, por um descuido, engravidou de mim. Ela se sentiu muito insegura com a nova gestação e, assim que nasci, começou a ter os mesmos sintomas de depressão, porém agravados. Então, quando eu estava com dois meses, ela escreveu um bilhete para o meu pai e foi embora.
     Confesso que até aí eu entendo. Ela estava doente, não posso julgá-la. O que nunca entendi foi ela não ter voltado. Passei a infância e a adolescência esperando que ela retornasse, arrependida e curada, como a Meryl Streep em Kramer versus Kramer, mas isso não aconteceu. Ela não voltou, nem sequer enviou uma carta ou deu um telefonema. Nunca mais tivemos notícias dela. E, embora eu não tenha nenhum contato com a mulher que me deu à luz, não posso deixar de me perguntar se existe algum imperativo biológico por trás desse comportamento. Se a genética da minha mãe a predispôs à depressão pós-parto, quem garante que não será o mesmo comigo? Se ela não foi capaz de se adaptar ao terremoto que é o nascimento de uma criança, como posso ter certeza de que serei?
     Some-se a isso o fato de que convivo com a ameaça da depressão. Há anos, ela não me assalta, mas, ao menor sinal de que está a caminho, já tomo as minhas providências. É claro que me assombra o fato de a gravidez e o parto serem um gatilho. Se a filha do Kevin Costner se revelou uma psicopata, tal qual o pai, em Instinto Secreto, por que eu não seria exatamente igual à minha mãe? Talvez só a Nina tenha se salvado...




 
     Era segunda-feira e eu ainda não acreditava que Nina estava me arrastando para uma conversa sobre educação de filhos, na escola de Mel e Luna. Ela é do tipo dependente, o oposto de mim. Não sabe fazer nada sozinha, nem comprar um vestido. Quando soube que Maurício, seu marido, estaria viajando no dia da reunião, me escalou para acompanhá-la.
     - Logo eu?!
     - Quem sabe assim você anima?
     - É mais provável que eu desanime por completo – disse, contrariada.
     Fiquei constrangida quando chegamos lá. Os pais estavam sentados em círculo em torno da assessora educacional. Liam o texto de uma entrevista concedida pelo escritor Sergio Sinay ao Mulher 7x7. Então, me animei. O título do texto era: “Para dedicar tempo aos filhos, é preciso deixar outras coisas de lado”. Esse sempre foi o meu argumento. Talvez encontrasse ali subsídios que me ajudassem a provar, de vez, o meu ponto de vista.
     Sociólogo, jornalista, especialista em vínculos afetivos, Sergio Sinay, um requisitado consultor sobre assuntos familiares, tem vários livros publicados. O mais recente, Sociedade dos Filhos Órfãos, é uma dura crítica ao modo de vida da atualidade, em que pais delegam a educação e a atenção aos filhos para babás, escolas e até para as novas tecnologias.
     Segundo o escritor, sempre houve pais que não assumem responsabilidades e sempre haverá. Contudo, nunca houve como hoje um fenômeno social tão amplo e profundo a ponto de criar uma geração de filhos órfãos de pais vivos. Exagero à parte, concordei com ele. E concordei ainda mais quando afirmou que “é sempre mais fácil corrigir excessos do que superar uma ausência”. Eu sabia disso muito bem. Sabia também que não queria pecar pelo excesso nem pela ausência. Eu simplesmente não queria fazer aquilo.
     Desmitificando o badalado “tempo de qualidade”, o autor afirmou que não há qualidade sem quantidade. Olhei para Nina, como quem diz “eu sempre falei isso”. Em qualquer tarefa para alcançar qualidade é preciso tempo, compromisso e dedicação. O “tempo de qualidade” não passa de uma conveniente desculpa para os pais culpados. Por isso, o meu ponto de vista é: se não há tempo para os filhos, é preciso pensar antes de se tornar pai ou mãe. Depois é tarde.
     O autor terminou dizendo que ser pai e mãe é uma escolha. Em pleno século 21, quem não quer ter filhos não tem, de modo que não há desculpas.
     Alguns pais reagiram, como era esperado. Afinal, têm filhos e não têm tempo para eles. Decidi não julgar ninguém ali, até porque desconhecia a realidade de cada família. Mas saí de lá convicta de que estava certa em todas as minhas ponderações. Eu não tinha tempo e não estava disposta a abrir qualquer brecha na minha agenda para encaixar uma criança. Inácio teria que entender isso de uma vez por todas e esquecer aquele sêmen congelado.
     Ignorei por completo outro pensamento que surgiu – o de que, talvez, aquele sêmen não estivesse reservado exclusivamente para mim.

 


     Mostrei o texto da entrevista a Inácio aquela noite.
     - Bacana – ele se limitou a dizer.
     - Você concorda?
     - Claro que sim.
     - E, mesmo assim, colocaria um filho no mundo?
     Ele me encarou.
     - Você está querendo conversar sobre isso, Tessa?
     Não respondi.
     - Qual é o problema? - insistiu.
     - Por que você congelou aquele sêmen? - perguntei, por fim, num tom abafado.
     Ele suspirou.
     - Já te expliquei.
     - Você sabe como me sinto a respeito.
     - Sim.
     - E congelou assim mesmo...
     - Porque eu não estou certo de como me sinto a respeito.
     - O que quer dizer?
     - E se eu resolver que, afinal, quero um filho?
     - Você quer?
     - Eu não sei...
     - Mas sabe que eu não quero.
     - Sei.
     - Então?
     - Você pode mudar de ideia.
     - Impossível.
     - Tessa...
     - Por que você guardou aquele sêmen, Inácio? Seja sincero!
     Ele caminhou pela sala, enquanto escolhia as palavras. 
     Enfim, disse:
     - Porque espero que você mude de ideia.
     - E se eu não mudar?
     Ele não respondeu.
     - Vai usá-lo assim mesmo? - coloquei-o contra a parede.
     - Não sei – disse, após uma longa pausa.
     Senti o meu coração afundar no peito. Enfim, chegamos ao ponto, mas nunca pensei que doeria tanto. Peguei as chaves do carro e o celular e saí do apartamento, batendo a porta.



 
     Por sorte, a minha mochila de treino estava no porta-malas do carro. Eu deveria ter nadado aquela manhã, mas uma reunião de trabalho marcada na última hora me obrigou a cancelar.
     Dirigi para a academia com lágrimas nos olhos. Eu detestava chorar, não gostava de me sentir vulnerável. As coisas estavam fugindo ao controle, e eu precisava retomar as rédeas da situação.
     Enquanto colocava o maiô, ouvi o toque do meu celular. Clocks. Era Inácio. Pus o aparelho no silencioso e o tranquei no armário, junto com a mochila. Combinamos nunca fazer isso. Por mais magoados que estivéssemos com o outro, sempre deveríamos atender às chamadas. Era uma questão de respeito e consideração. Mas, naquele dia, ignorei nossas regras.
     Não tinha ninguém na piscina, o que me alegrou um pouco. Mergulhei com fúria, e as primeiras braçadas evidenciaram o quanto eu estava tensa. Aos poucos, fui relaxando. E, então, me permiti pensar no assunto que me afligia. Aquela pausa me ajudaria a entender o que estava acontecendo. A elaborar melhor o conflito.
     Foram 4.800 metros, até que eu decidi parar – o que Inácio certamente chamaria de um “treino pshyco”. Nesse tempo, tentei fazer com que as coisas fizessem sentido.
     Por mais que eu tentasse enxergar a questão sob a ótica dele, não conseguia deixar de pensar no quão temerário era obrigar alguém que não deseja ter filhos (e não tem vocação) a tê-los. Isso é muito sério! Não se pensa nas consequências disso para a geração futura? Nas sequelas que pode acarretar a crianças inocentes? Minha mãe nunca deveria ter tido filhos. E, se fosse sensata, não teria engravidado novamente depois de Nina.
     Eu já tinha aprendido que a vida não era um mar de rosas e não queria correr o risco de criar situações que me trouxessem mais frustrações. Podia ser egoísmo, mas era a forma que tinha encontrado de me defender.
     Não achava justo colocar uma criança no mundo quando se tinha todas essas dúvidas e medos. E eu tinha razão para o medo. Ao que tudo indicava, Nina não herdara o gene gaiato de minha mãe. Mas e quanto a mim? Eu me dava o benefício da dúvida, já que o meu histórico de depressão não era um bom prognóstico.
     Com certeza, o único dado certo, àquela altura, era a liberdade de escolha – afinal, até o imperativo doutrinário da Igreja Católica que obrigava a procriação já tinha sido jogado por terra há tempos. Havendo opção, nada mais legítimo que a decisão de não ter filhos. Ora essa, cada um é que sabe onde lhe dói o calo. E, é claro, era possível (e muito possível!) viver de forma plena prescindindo da maternidade.


     Voltei para casa mais leve do que saí. Apesar disso, sabia que não tinha ido ao cerne da questão. Me atolei nos argumentos em prol da liberdade feminina, mas ignorei por completo o desejo de Inácio, que era o que interessava naquele momento. Vira e mexe, eu tinha momentos de lucidez, em que reconhecia a fuga como uma de minhas estratégias de sobrevivência, tal qual Ofélia em O Labirinto do Fauno. Mas aquele não foi um desses momentos.
     Inácio tinha me ligado várias vezes enquanto eu nadava. Enviara dezenas de mensagens também, perguntando onde eu estava e pedindo para que eu voltasse para casa.
     Entrei no apartamento pisando em ovos. Não queria acordá-lo de jeito nenhum. E, pelo silêncio, concluí que já deveria estar em sono profundo. Ponderei se deveria me deitar com ele ou não. Mas, se eu dormisse no sofá, ou em qualquer outro lugar, estaria lhe dando mais munição. Eu já tinha saído de casa, batendo a porta, e ignorado suas ligações. Estava encrencada o suficiente.
     Embora não tenha feito ruídos, Bela me denunciou. Assim que deitei na cama, ele acendeu o abajur ao seu lado.
     - Onde você estava? Fiquei preocupado – não havia nenhum tom de reprovação em sua voz.
     - Eu sei. Me desculpe. Fui nadar.
     Ele se sentou na cama e colocou os óculos de grau que vinha usando nos últimos tempos. Não pude deixar de pensar no quanto ele era incrivelmente charmoso, mesmo com os cabelos desgrenhados.
     - Escuta, Tessa, sei que disse aquilo, mas não tenho nenhuma intenção de ter um filho se não for com você, está bem?
      Fiz que sim com a cabeça e me aproximei dele. Então, o abracei. Era um alívio fazer as pazes. Eu odiava nossas brigas e discussões. Deitada em seu peito, não percebi quando caí no sono. 
         Mas me recordo, com nitidez, do sonho que tive. Naquela noite, a exemplo de muitas outras, sonhei repetidamente com um chupim.
     Não sei se você sabe, mas o chupim, chamado indevidamente de pássaro-preto, é uma ave um pouco diferente das outras. Sua fêmea, ao contrário das outras espécies, não constrói o próprio ninho, mas se aproveita do trabalho de outros pássaros, sobretudo do tico-tico. Clandestinamente, a mamãe chupim deposita seus ovos no ninho alheio, e sua astúcia vai a ponto de eliminar os ovos legítimos. Assim, o pobre tico-tico, sem dar pela coisa, cuida dos filhotes do chupim, como se fossem os próprios.
     O hábito parasita dessa ave sorrateira é tão conhecido, que a população rural costuma apelidar de chupim os maridos preguiçosos, que vivem às custas das mulheres. O que, na minha opinião, se aplica igualmente às mulheres sanguessugas, que abusam dos maridos.
     Parasitismo à parte, o que me intrigava era a recorrência daquele sonho, que tinha feições de pesadelo. Por que a imagem do chupim me perseguia? Seria uma advertência? Um aviso?




Excepcionalmente, o capítulo 3 será publicado na próxima sexta-feira, dia 18 de outubro.
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Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto, Lucíola Pereira, Miriam Porto e Moema Mourão.

Coldplay - Clocks

4 comentários:

  1. Adorei Cynthia... que delícia! Ótimas reflexões. Já estou aguardando mais .... tinha visitado o blog para ver se tinha nova publicação. Adorei receber o capítulo por e-mail. Beijinhos, Najla.

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  2. Gosto muito de observar e ler sobre as aves. Inclusive há poucos dias presenciei uma fêmea de Tico-Tico alimentando um enorme filhote preto. Estou curioso prá saber aonde esse paralelo vai nos levar...

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  3. Muito pouco Cynthia, muito pouco!!!!
    Estou amando!!!!
    Daiane

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  4. "Para alcançar qualidade é preciso tempo, compromisso e dedicação", como é verdadeiro isso, e o é em todos os campos de nossa vida, bem como é verdadeiro o fato de todas as nossas escolhas terem repercussões em nossas vidas. Daí o desafio de fazer boas escolhas, escolhas condizentes com os nossos objetivos de vida. O que é uma boa escolha para um não é para outro, qual será a boa escolha para Tessa? Aiii, como dá vontade de dar nossa opinião, como faz surgir no interno o pensamento de que a minha escolha é a melhor para o outro, risos, quanta ignorância e vaidade. Tessa faz pensar, mostra a responsabilidade da escolha de ser mãe para si mesma e a repercussão desta escolha na vida de outros. Que gostinho de quero mais! Thais Camilozzi

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