Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação (fértil) da autora. Qualquer semelhança é mera coincidência. Eu garanto!

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

CAPÍTULO 1


Viver não dói. O que dói
é a vida que não se vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.”
(Emílio Moura)


     “A topografia da vida é acidentada”. Foi com essas palavras que a Leila Ferreira, uma de minhas escritoras favoritas, deu início ao bate-papo, que culminaria no lançamento de seu terceiro livro: Viver não dói, naquela quinta-feira de setembro.
     O título me intrigou assim que soube do novo livro. Como assim, viver não dói? Mas, ela logo esclareceu: viver dói, sim, porém é mais doloroso não viver, ou viver anestesiado. Palavras provocadoras, pensei.
     Eram oito da noite, e eu estava no Teatro do Sesiminas, acompanhada de minha amiga Anita. Digo a todos que somos primas, mas, na verdade, ela é prima do Inácio, meu marido. Descobrimos muitas afinidades desde que nos conhecemos, e hoje brinco que ela é mais minha prima do que dele.
     Uma das coisas que nos une é, sem dúvida, a literatura. Foi uma alegria descobrir que ela era tão alucinada por livros quanto eu. “Vamos diminuir o prejuízo”, lembro de termos brincado. Desde então, o intercâmbio não parou mais.
    Embora não sejamos muito parecidas, em nenhum aspecto, sinto que as diferenças é que tornam a nossa amizade completa. É como se ela tivesse os fragmentos que me faltam, e vice-versa.
     Encaramos duas horas e meia de fila para conseguir uma foto e um autógrafo da Leila em nossos livros. Valeu a pena!

“Querida Tessa,
viver dói, sim.
Mas é uma dor que ensina – e que sempre passa!
Beijos da Leila.”

     Enquanto ainda aguardava ansiosamente a minha vez na fila, recebi uma mensagem de Inácio no celular.

    Onde você está?

    Na fila dos autógrafos.

    Até agora?

    Sim!

    Vem pra casa logo. Tô com saudade.

    :-)

    Em seguida, enviei uma foto minha e de Anita para ele.

    Photoshop.

    Não! Somos lindas mesmo!

    Concordo. Volta logo.

 
   
   
    Cheguei em casa, à uma da manhã, silenciosamente, para não acordar Inácio. Assim que abri a porta do apartamento, Bela correu em minha direção e, o que eu temia, fez xixi. Não tem jeito. Ela tem esse defeito de fabricação ou, como preferem os advogados, vício oculto. Sempre que chego em casa, minha cadelinha shih tzu se emociona e faz xixi aos meus pés.
    Peguei Bela carinhosamente no colo e me dirigi ao escritório. Lá, tirei as roupas que vestia e lavei o rosto no lavabo. Não queria acordar o meu marido. Sabia que ele teria que acordar cedo para atender no consultório. Então, fui até o closet, vesti uma camisola de seda e, só então, reivindiquei meu lugarzinho na cama, ao que Bela se acomodou em suas almofadas no chão, ao meu lado.
     “Nada melhor que uma cama já aquecida”, lembro-me de ter pensado. No entanto, mal pousei a cabeça no travesseiro, senti os braços de Inácio envolvendo a minha cintura.
     - Você chegou! – ele sussurrou em meu ouvido. Como foi?
     - Amanhã te conto.
     - Por que amanhã?
     Percebi que ele estava mais desperto do que eu supunha. Girando o corpo, fez nossas pernas se entrelaçarem.
     - O que está pretendendo?
     Não obtive resposta, pois, nesse momento, suas mãos já deslizavam por meu corpo. 

 
 
 
     Inácio saiu cedo na manhã seguinte, mas deixou o café pronto para mim. Enquanto tomava uma ducha, fiz uma breve retrospectiva do último ano e me senti aliviada ao constatar que, enfim, as coisas estavam entrando nos eixos de novo.
     Há cerca de um ano e meio, fomos surpreendidos por um diagnóstico inesperado: Inácio estava com câncer nos testículos. Lembro-me de ser invadida por uma tristeza cortante e indescritível. De repente, tudo o que fazia sentido, pareceu não fazer mais. De uma hora para outra, nada mais era prioridade, apenas a recuperação dele.
     O medo de perder Inácio foi avassalador. Recordo com nitidez o meu desespero, na sala de espera do bloco cirúrgico, no dia em que ele se submeteu à primeira cirurgia. Tudo aconteceu muito rápido. Eu mal tinha processado o diagnóstico, e os médicos já estavam removendo os testículos dele. Olhei sua carteira, seu celular, seu relógio e a aliança, no meu colo, e desatei a chorar. Depois de um longo tempo, depositei todos os objetos pessoais do meu marido em uma sacola plástica e os guardei na bolsa. Fui, então, até a lanchonete do hospital e pedi um chá de erva-cidreira. Era assim que meu pai sempre me acalmava e, naquele momento, eu precisava me acalmar.
    Tentei comer torradas, mas nada, além do chá, desceu. Aos pouquinhos, me permiti relaxar e, sem perceber, comecei a recordar o meu primeiro encontro com Inácio, oito anos antes. Eu tinha 22 anos e acabara de me formar em Direito. Havia passado em um concurso para técnico de um tribunal estadual quando estava no 7º período do curso. Já sabia de antemão que não queria advogar; então, o caminho que escolhi trilhar foi o dos concursos públicos. Contudo, eu tinha ambições maiores. Considerava aquele um cargo transitório, um degrau para alcançar posições melhores no meio jurídico – o que também significava um trabalho menos burocrático e mais rentável.
     Assim que me formei, comecei a fazer um cursinho preparatório para concursos jurídicos. Eu assistia às aulas pela manhã e trabalhava à tarde. No intervalo entre essas atividades, eu nadava, todos os dias. E foi aí que comecei a sentir algumas dores no braço direito.
     No início, ignorei o incômodo. Mas, com o tempo, comecei a me sentir limitada. Então, uma colega do tribunal sugeriu que eu procurasse um ortopedista. Achei a ideia péssima. Eu tinha a pior impressão possível dessa categoria de médicos. Todas as vezes que havia recorrido a um ortopedista, a consulta não tinha durado nem três minutos, e o médico mal me olhou. A prescrição era sempre a mesma: anti-inflamatório e fisioterapia.
      - Esse médico é bom – garantiu Fernanda, minha colega de trabalho. Eu estava sentindo dores no trapézio, e ele foi o único que descobriu a causa.
      - Sei... - retruquei, incrédula.
      - Bem, se serve de incentivo, ele é um gato, também. Infelizmente, é superprofissional.
      Caí na risada e não acreditei em uma palavra. Mas resolvi marcar uma consulta. Quem sabe?!
      - Me passa o nome e o telefone do bambambã, então.
     Fui até a clínica numa quarta-feira, completamente desacreditada. “O que leva alguém a escolher ortopedia, quando oftalmologia parece muito mais interessante?”, lembro-me de ter pensado. “Será que é mais fácil passar na prova de residência?”.
      Aguardei alguns minutos na sala de espera, até que a secretária me chamou:
      - Tessa, o Dr. Inácio vai atendê-la. Segunda porta à esquerda.
     Caminhei pelo corredor branco, asséptico e bem iluminado e dei de cara com um sujeito, de jaleco, parado em frente à porta a que me dirigia.
      - Oi, Tessa - ele cumprimentou.
      Analisei o médico em uma fração de segundo. Um pouco mais alto que eu, devia ter, no máximo, 1,78m, ou seja, baixo para os meus padrões. Claro, tinha os cabelos castanhos e ondulados, meio rebeldes, uma barba clara despontando e olhos verdes acinzentados. Um tipo comum, não fosse pelo sorriso arrasador. Assim que ele me cumprimentou, estendeu a mão e sorriu, fiquei completamente desarmada. Sabe aquele sorriso amplo e luminoso? Pois é. Além disso, seus dentes eram branquinhos e quase perfeitos, não fosse pelo fato de os dois da frente serem levemente separados um do outro, o que lhe conferia um charme inexplicável. Ele me lembrava alguém, mas eu não sabia quem.
     - Em que posso ajudá-la, Tessa?
     - Bem, Dr. Inácio, de uns tempos para cá, estou sentindo fortes dores no braço direito.
     - Quantos anos você tem?
     - 22.
     - Estuda? Trabalha?
     - Trabalho. Sou servidora pública.
      Ele olhou, curioso.
     - Já se formou?
    - Sim, eu me formei no final do ano passado – eu não sabia qual era a relevância dessa informação.
     - Em Direito, suponho.
     Ele era bom. Ou será que isso estava estampado na minha testa?
     Não demorei a descobrir que foi a camiseta que usava que me denunciou. A camiseta da comissão de formatura.
     - E como é o seu trabalho? Digo, o que você faz: passa muito tempo sentada? Digita muito?
     Respondi afirmativamente às duas questões. Ele anotou algo em sua ficha.
     - Sente outras dores?
     - Não.
     O que se seguiu foi um minucioso interrogatório acerca do meu histórico de saúde. De fato, ele era detalhista. Por fim, ele me perguntou:
    - Você está tomando alguma medicação?
    Fiquei em dúvida se deveria ser sincera nessa resposta. Eu já tinha omitido as minhas visitas ao psiquiatra. Mas, por alguma razão, decidi falar a verdade. Antes de ser um sujeito atraente, ele era médico. Eu não estava ali para paquerar, mas para tentar melhorar. E qual é o problema de se ter um histórico de depressão, afinal?
   - Tomo Prozac todos os dias – e fui logo informando a dosagem.
    Ele me encarou:
   - Posso saber por quê? – não havia censura naquelas palavras, mas um interesse genuíno.
   - Tenho um histórico pessoal e familiar de depressão. Faço controle com um psiquiatra.
   - Isso é bom. Faz terapia, também?
   - No momento, não.
    Inácio me olhou atentamente.
   - Você pratica esportes, Tessa?
   - Eu nado, diariamente.
   - Que ótimo! – ele sorriu.
   Aquele sorriso poderia ser enquadrado na categoria “matador”, com folga.
  - Nadar é terapêutico para mim, Dr. Inácio – disse, tentando me manter concentrada no que interessava.
  - Posso apostar que sim. Eu também nado – ele me surpreendeu. As dores estão atrapalhando?
  - Sim, muito.
  - Ok, deixe eu examiná-la. Pode tirar a blusa, por favor?
    Ah, não! Eu deveria ter previsto isso. Era óbvio. Além de ter ido à consulta de camiseta de malha e legging, eu não tinha caprichado na lingerie. Que vergonha! Eu nem me lembrava de qual estava usando. Não custava nada estar furada, ou ser uma daquelas de algodão estampada com coraçõezinhos.
     Por sorte, era branca e lisa. Neutra.
   Enquanto ele me examinava, pedindo para que eu levantasse um braço, depois o outro, movesse o pescoço em todas as direções, etc., eu me perguntava que cheiro ele tinha. Não conseguia identificar. Não era doce nem cítrico. Cravei os olhos em suas mãos, tentando identificar o "probleminha" na mão esquerda. Felizmente, ele não tinha.
    - Pode vestir a blusa, Tessa.
   Fiquei desapontada. O exame tinha acabado, e, como Fernanda tinha dito, ele foi superprofissional.
    Ele se sentou novamente e informou:
   - Ao que tudo indica, é uma tendinite no ombro direito. Vou prescrever uma injeção e uma medicação anti-inflamatória para amenizar os sintomas. Mas quero que você faça algumas sessões de fisioterapia também e volte daqui a um mês.
  - Desculpe a indiscrição, Dr. Inácio, mas alguém já disse que você não se parece com um ortopedista? – assim que soltei a bomba, já me arrependi. Às vezes, sou incapaz de controlar os meus impulsos.
    Ele me olhou curioso. Depois de uma pausa, disse:
   - Acho melhor não perguntar por quê. Vou encarar como um elogio.
   - É um elogio.
   Ele sorriu e começou a escrever em seu bloco. A letra dele era bonita, ao contrário da de todos os médicos que eu conhecia. É, pensei, ele é um médico diferente dos outros. Dos demais ortopedistas, com certeza.
   - A propósito – ele pigarreou – você nada aonde?
   Achei a pergunta natural, já que ele também era um adepto do esporte, e disse o nome da academia.
   Em seguida, ele me entregou as receitas.
   - Espero que melhore, Tessa.
    Fiz tudo o que ele prescreveu. Dois meses se passaram, e eu estava me sentindo bem melhor. Não dava para dizer que estava 100%, mas chegava perto disso. Por essa razão, não voltei ao consultório.
   Parte de mim queria voltar. Para lhe contar que eu havia melhorado. Para agradecer. E também para vê-lo novamente. Às vezes, eu me pegava lembrando do sorriso dele, de sua voz grave e até do seu cheiro, que eu estava convencida de ser almiscarado. Alguma loção pós-barba, provavelmente.
   Por outro lado, eu dizia a mim mesma que não fazia sentido voltar. Eu estava bem, e ele provavelmente não tinha uma boa impressão de mim. Estava mal arrumada quando fui ao consultório. Cabelos presos em um rabo de cavalo mal feito, roupa casual e larga, unhas por fazer. Ele devia estar acostumado com mulheres interessantes e elegantes. E mais maduras, também. Pelo número do registro dele, calculei que deveria ter uns 32 anos, ou seja, 10 a mais que eu. Devia me considerar nova demais para ele. Sem contar as minhas tendências depressivas.
   Sendo assim, não voltei.
   E, portanto, não esperava vê-lo novamente.
  Era sábado, e cheguei à academia no meio da manhã. Decidi que nadaria até a hora do almoço e passaria a tarde assistindo às aulas extras no cursinho. O edital de um concurso muito interessante acabara de ser publicado, e eu queria investir nisso.
   Depois de uma hora e vinte minutos de treino, resolvi dar uma parada. Já tinha notado um rapaz na raia ao lado, mas não dei muita atenção. Tirei os óculos e comecei a beber a água da minha garrafinha, observando atentamente o meu companheiro de treino. Ele nadava um crawl invejável. Além disso, tinha ombros fortes e largos. Pode parecer estranho, mas sempre reparei nos ombros masculinos. Enquanto muitas mulheres se detêm em outras partes da anatomia, por alguma razão que não sei explicar, gosto de reparar nos ombros dos homens. Um homem magro e forte, com ombros largos, chama muito mais a minha atenção que outro de músculos esculpidos.
   Meu companheiro de treino se aproximou da borda em que eu estava e, subitamente, parou. Reconheci aqueles olhos verdes acinzentados assim que ele retirou os óculos. Em seguida, veio o sorriso.
   - Oi, Tessa!
   Ele lembrava o meu nome. Não dava para acreditar! E eu estava de touca. Uma touca horrorosa, por sinal.
   - Dr. Inácio?
   - Inácio – ele corrigiu.
   - Você também nada aqui?
  - Comecei esta semana. E completou: Precisava me certificar de que você tinha melhorado.
    Fiquei confusa e sem fala por alguns segundos.
  - Você está brincando, certo?
  - Sim, estou – ele riu. E fez um adendo: O local onde eu nadava fechou. Então, me lembrei de sua menção a esta academia.
  - Gosto muito daqui – disse, mais relaxada.
  - Também estou gostando.
    Fez-se uma pausa, então ele prosseguiu:
   - Afinal, você melhorou?
   - Sim. Sei que devia ter voltado...
  - Não precisa explicar – ele fez um sinal com a mão. Quando os pacientes desaparecem, em geral, é porque estão bem.
    Deu uma risada e completou:
   - Ou não foram com a minha cara.
   - Estou no primeiro caso.
  - Que ótimo! A propósito, que treino pshyco foi este? Está se preparando para a travessia do Canal da Mancha?
  - Não, ficaria satisfeita com a Lagoa dos Ingleses. É para desestressar, entende?
    Ele fez que sim com a cabeça.
    Neste momento, eu lembrei.
  - Christian Bale.
  - O quê?
  - Você se parece com o Christian Bale.
  - E quem é ele?
  - O psicopata americano.
  - Como é que é? Eu me pareço com o psicopata americano? – perguntou, incrédulo.
    Percebi o meu fora.
  - Ele fez o Batman, também.
  - Está começando a melhorar... Mas ainda não sei quem é.
  - Você não vai ao cinema?
  - Se tiver uma boa companhia, eu vou. Nos últimos tempos, não tenho ido.
   Fiquei sem saber se era uma cantada, ou não.
  - Você tem cara de nerd, do tipo que só estuda.
   Mentira. Ele era muito charmoso para ser rotulado de nerd. Sempre parti da premissa de que todo nerd é feio e sem graça.
  - Você também – ele devolveu.
   Pronto. Me acertou em cheio.
  - Mas eu sou – respondi, desafiando.
  - Então, a gente combina.
  Se eu tinha alguma dúvida de que era uma cantada, a certeza veio.
  - Quem sabe continuamos essa conversa na lanchonete?
   Hesitei por milésimos de segundo.
  - Tudo bem – disse, e me sentei na beira da piscina.
   Em pouco tempo, ele também já estava do lado de fora. Confirmei minhas impressões: ele não era muito alto, mas tinha a compleição forte. Seus ombros eram largos, típicos de um nadador. Percebi que ele não mentiu quando disse que praticava o esporte. Só não sabia se a história da piscina que “fechou” era verdadeira. Mas, ao que tudo indicava, eu estava prestes a descobrir.
   Vinte minutos mais tarde, cheguei à lanchonete. Ele já estava lá. Pedimos uma jarra de suco de abacaxi com hortelã.
 - Tive que ir ao Google para encontrar o cara – ele comentou, apontando o celular. Um Batman bem mais ou menos, hein?!
 - É, não foi dos melhores – tive que concordar. Acho que ele tem talento é para psicopata mesmo.
  Nesse instante, tive a impressão de que ele quis dizer algo, mas acabou desistindo.
 - Ok, começamos bem – disse, por fim. Você acha que tenho cara de maluco.
 - Nada disso! – dei uma risada e desisti de dar mais explicações.
  Eu gostava do Christian Bale, mas não iria dizer isso a ele. Achava que ele tinha um charme peculiar, tal qual Inácio.
 - Com que frequência você nada, Tessa?
 - De segunda a sábado.
 - Sempre nesse horário?
 - Aos sábados, sim. Nos dias de semana, começo bem cedo. Às seis e meia, já estou na piscina.
 - Puxa, que animação!
 - Na verdade, é falta de opção.
   Ele me olhou, curioso.
  - Faço cursinho. As aulas começam às oito.
  - Entendi. E na parte da tarde você trabalha.
  - Isso.
  - Nunca pensou em nadar à noite? Algumas pessoas acham relaxante.
  - Pode ser, mas, para mim, é impossível. À noite, fico com o meu pai.
   Senti que ele queria perguntar mais, mas teve receio de parecer invasivo.
  - Meu pai tem uma doença degenerativa que o incapacita para muitas coisas. Durante o dia, uma enfermeira cuida dele, mas à noite a responsabilidade é minha – expliquei.
   - O que ele tem? – Inácio perguntou, sério.
   - Esclerose múltipla. Em estágio avançado.
   - Lamento muito, Tessa.
   Assenti com a cabeça.
   - E sua mãe?
   - Não tenho mãe – falei em voz baixa.
   Dizer que não tinha mãe não correspondia à verdade. Mas fazia isso de propósito. É claro que Inácio concluiu que ela tinha morrido. É o que queria que todos pensassem quando dizia isso.
    - Ela já faleceu?
    - Não, ela nos deixou – respondi, friamente.
    Eu achava que fazer essa cena me fazia bem. Demorei um pouco para descobrir o quanto me fazia mal.
    Inácio ficou surpreso.
     - Faz muito tempo?
     - Eu era apenas um bebê.
     - Lamento por isso também.
     - Não faz diferença. Eu praticamente não a conheci. Nunca senti falta dela.
     Senti seu olhar incrédulo cravado em mim.
     - Quer falar sobre isso?
     - Não há nada para dizer. Ela foi embora, meu pai nos criou, ficou tudo bem.
    É claro que não poderia ter ficado tudo bem, e Inácio não precisava ser um especialista no assunto para perceber isso.
    - Você tem irmãos, então.
    - Uma irmã mais velha, Nina.
    Ele assentiu silenciosamente.
    Fez-se uma curta pausa. E, como se pudesse ler meus pensamentos, Inácio propôs:
    - Que tal um sanduíche?
    - Ótima ideia. Estou morrendo de fome! – respondi, aliviada, consultando o relógio, o que não passou despercebido a ele.
     - Tem planos para hoje à tarde?
     - Vou assistir a algumas aulas no cursinho.
     - Ah... E o que vai fazer à noite?
      Fiquei sem saber ser era pura curiosidade, ou se ele estava pensando em me chamar para sair. De qualquer maneira, eu não poderia aceitar, se fosse o caso. Flora, a enfermeira de papai, sairia às sete, e eu ainda precisava fazer o bolo para o chá de bebê da Nina, no dia seguinte.
      - Um bolo – respondi.
      Ele pareceu confuso.
      - Para o chá de bebê da minha irmã.
      - Sua irmã vai ter um bebê?
      - Sim, em dois meses e meio, nasce a minha sobrinha, Mel.
      - E você está feliz em ser tia?
      - Muito.
      Ele sorriu.
      - Você pensa em ter quantos filhos, Tessa? – ele me surpreendeu com a pergunta casual e pontual.
        Que ótimo! Ele não perguntou se penso em ter filhos, mas quantos filhos pretendo ter.
        Pensei bem em como deveria responder ao inesperado questionamento, enquanto dava uma mordida demorada no meu sanduíche. Mas acabei optando pela sinceridade. Embora vivesse sob a permanente sugestão da maternidade, eu pensava um pouco diferente da maioria das mulheres.
        - Não penso em ter nenhum – respondi.
        Ele se remexeu desconfortavelmente na cadeira, como se a minha resposta não fosse o que estivesse esperando.
       - Não?! – ele franziu a testa.
       - Não – confirmei.
       - Você não gosta de crianças?
       - Gosto. Não tenho muito jeito com elas, mas gosto. Só não quero ter as minhas.
       Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Então, disse:
       - Bem, você há de convir que é raro ouvir isso de uma mulher, mesmo hoje em dia.
      - Talvez porque a maioria nunca pare para pensar sobre o assunto. Desde que nascemos, somos condicionadas a ser mães. Poucas pessoas consultam a si mesmas para saber se é isso que desejam.
       Ele pareceu desconcertado. Talvez não quisesse mais conversar comigo. Não seria o primeiro a se afastar por me achar dura e insensível.
       Mas ele se recompôs rapidamente.
       - Tessa, perdoe-me a indiscrição, mas você pensa em se casar um dia?
       - Claro que sim. Por que não?
       - Um casamento sem filhos, então?
       - Isso!
       - Interessante – ele se limitou a dizer.
      Terminamos os sanduíches, ele pagou a conta e me ofereceu uma carona. Na porta do cursinho, nos despedimos com dois beijos no rosto, e ele me desejou um ótimo final de semana. Saí do carro convicta de que, se ele pretendia me chamar para sair, havia desistido. Talvez, como médico, ele soubesse lidar com uma garota deprimida com um pai doente, mas, provavelmente, não queria sair com alguém que, de antemão, avisa que não quer ter filhos. Ainda que o homem não esteja pensando em um relacionamento sério, uma mulher assim é sempre rotulada de egoísta e insensível, e é logo descartada.
         Bom, fazer o quê?, eu pensei. Preferia ser honesta a me envolver com alguém que tinha falsas expectativas em relação a mim.
         Evitei pensar nele o resto do final de semana, e fiquei muito surpresa ao encontrá-lo na piscina na segunda de manhã.
        - Não sabia que você também nadava de madrugada – brinquei, assim que o vi.
        - Nem eu – ele retirou os óculos. Seu entusiasmo me contagiou.
        - Que ótimo! – devolvi, intrigada.
        Nadamos, lado a lado, por 40 minutos, até que anunciei:
        - Vou parar. Preciso ir.
        - Precisa de uma carona também?
        - Você já vai?
        - Sim, preciso trabalhar. Meu plantão no hospital começa às oito.
        - Não se preocupe comigo. Não quero desviá-lo do caminho.
        - Que bobagem! – ele disse, encerrando o assunto.
        Quando saí do vestiário, ele estava recostado na parede em frente, mexendo no celular, com os cabelos molhados e a mochila pendurada em um dos ombros. O que mais me chamou a atenção foi o “uniforme” de médico. Ele parecia bem diferente de alguns minutos atrás. Mais sério e compenetrado, eu diria. De Batman a Bruce Wayne.
        Clocks, do Coldplay, tocava naquele exato momento, na sala de ginástica, e podia ser escutada por nós. Isso marcou aquele instante. Inácio levantou os olhos, que estavam presos ao celular, e me encarou com um misto de doçura e desejo. Tive certeza, então, de que ele estava interessado em mim. Contrariando todas as minhas suposições.
        Enquanto caminhávamos até o carro, saquei uma maçã da mochila.
- Aceita um pedaço?
Fiquei surpresa com a forma tranquila com que ele se virou e deu uma mordida na maçã. Ficávamos à vontade um com o outro, isso era óbvio. Como se fôssemos velhos amigos.
- Qual é o problema com o seu trabalho?
Entramos no carro.
- Por que você acha que existe um problema?
- Você não está estudando à toa, está?
- Não – confirmei.
Dei um suspiro antes de explicar:
- Não é o emprego dos meus sonhos. Embora, tecnicamente, não seja um emprego – disse, bancando a engraçadinha.
- Não entendi.
- Piadinha jurídica sem graça – me limitei a dizer. Enfim, o que quero dizer é que almejo um trabalho mais interessante, menos burocrático e, sobretudo, mais rentável.
- O salário é ruim?
- Não é ruim, mas também não é bom. Digamos que me mantém, a uma vitrine de distância, do vestido de coqueiros.
Ele olhou intrigado. Resolvi falar sério.
- Considerando a situação financeira da maior parte da população, não posso reclamar do meu salário. Mas a verdade é que vivo apertada. A aposentadoria do meu pai mal cobre as despesas dele.
Fiz uma pausa.
- Por isso, acho que, se estudar e me dedicar, consigo algo melhor.
- Você parece decidida – disse, com uma ponta de admiração. E o que o vestido de coqueiros tem a ver com isso?
Dei uma risada.
- Estava andando pelo shopping outro dia, quando um vestido preto e amarelo, com estampa de coqueiros, chamou a minha atenção na vitrine da Maria Filó. Eu me aproximei para admirá-lo, mas fui logo repelida pelo preço estampado na etiqueta. Eu tinha ido lá para comprar o presente de chá de bebê da minha irmã. Disse a mim mesma que, algum dia, quando conseguisse passar em um concurso melhor, eu compraria um vestido como aquele. Sei que é bobagem, mas me lembrei dele quando você tocou no assunto.
Ele não disse mais nada.
Na porta do cursinho, nos despedimos.
- Até amanhã, Tessa!
Essa dinâmica se repetiu durante o resto da semana. Nadávamos, trocávamos de roupa, compartilhávamos uma fruta, e ele me deixava na porta do cursinho. Até que, na sexta, ele me surpreendeu com uma pergunta:
- Você nunca sai com os amigos?
Olhei, intrigada.
- À noite, quero dizer.
- Ah! Claro que sim! Quando tenho um compromisso, peço à Flora ou à Nina que fique com o papai.
- Alguma delas está disponível hoje?
- Você está me convidando para sair?
- Estou.
- Acho que a Nina pode ficar com ele – disse, sentindo o coração acelerar.
- Ótimo, então.
- Aonde vamos?
- Ainda não decidi.
Dei uma travada.
- Bem, isso é um problema. Como posso me arrumar se não sei aonde vou?
- Tenho a solução para isso – apontou o banco traseiro.
Olhei para trás e vi uma caixa branca. Ele fez sinal para que eu a pegasse. Coloquei-a no colo e abri a tampa. Envolto em papel de seda, estava o vestido de coqueiros.
- Não acredito! – exclamei. Por que você fez isso?
- Porque eu quis.
- Não precisava.
- Eu sei.
- Custou os olhos da cara... – disse, alisando o tecido.
- Que exagero!
Olhei para Inácio, com um misto de gratidão e acanhamento.
- Não sei o que dizer... Então, muito obrigada!
- De nada.
Eu me aproximei para beijá-lo no rosto, então ele segurou a minha nuca delicadamente e me beijou nos lábios. Para mim, durou um tempo impreciso. Estávamos parados em fila dupla na porta do cursinho, e uma buzina me trouxe de volta à realidade. Sorri, sem graça.
- Me dá o seu endereço – ele disse, puxando um receituário do porta-luvas, como se me beijar daquela forma fosse a coisa mais natural do mundo.
Minhas pernas ainda estavam bambas quando passei as informações.
- Te pego às oito – ele concluiu.
Não consegui me concentrar em nada aquele dia. O beijo de Inácio deixou uma forte impressão em mim. A lembrança de sua barba por fazer roçando a minha pele me causava arrepios. Passei o dia inteiro em compasso de espera. E em estado de impassibilidade. Vira e mexe, algum colega chamava a minha atenção. Minha concentração no trabalho era zero.
Nina ficou empolgadíssima quando soube que eu iria sair com um médico mais velho. Omiti que ele era ortopedista. Ela também tinha preconceito.
O vestido se ajustou com precisão. Inácio tinha o olho bom. Acertou o meu número. Assim que passou pela porta do meu quarto, Nina deu um assovio e sacou seu kit maquiagem da bolsa, a fim de incrementar a produção.
Nunca fui o tipo insegura com a minha aparência. Tenho outros tipos de insegurança, mas essa, não. Não sou linda, mas me acho bonita o suficiente. Minha estatura é mediana, o que considero ideal para uma mulher. Nem baixinha nem alta demais. Sou magra e não tenho tendência para engordar. Meu rosto é simétrico, o que significa que sempre fico bem nas fotografias. Meus cabelos são lisos na raiz e ondulados no comprimento (à la Gisele Bündchen). Por serem louros escuros, vou ao salão, de três em três meses, fazer mechas mais claras, para dar um contraste. Acho que dá um upgrade no visual. Ah, e os meus olhos são cor de açafrão (definição do meu pai), um tom bem exclusivo. Nunca encontrei ninguém que tivesse olhos da mesma cor. Dizem que são os olhos da minha mãe, mas não posso afirmar (e nem quero). As fotografias que vi estavam suficientemente desbotadas para que não fosse possível distinguir a cor dos olhos daquela que me expeliu de dentro de si.
Portanto, eu sabia que estava atraente quando fiquei pronta naquela noite. Meu pai me admirou de sua cadeira de rodas e soltou um “fiu, fiu”.
- Quem é o sortudo? – perguntou.
Neste exato momento, o interfone tocou. Para minha surpresa, Inácio avisou que ia subir. Achei muito esquisito. Já estava preparada para me despedir de meu pai e de Nina e descer. O que ele pretendia?
Abri a porta e o vi subindo o último lance de escada. Ele vestia uma camisa social preta, que contrastava com o uniforme de médico a que estava acostumada. A calça era cinza chumbo. Bem Batman, pensei. Mas não falei.
Ele me deu um beijo no rosto, e eu o convidei para entrar, meio relutante.
Nina e meu pai estavam na sala. Assim que Inácio entrou, eles o encararam. Antes que eu pudesse fazer as apresentações, ele estendeu a mão e cumprimentou meu pai:
- Muito prazer, seu Alberto. Sou o Inácio, amigo da Tessa.
Devia ter dito o nome do meu pai uma ou duas vezes, mas ele lembrava.
- O prazer é meu, rapaz – meu pai mal conseguia erguer os braços, mas, a seu modo, apertou a mão de Inácio.
- Você deve ser a Nina – ele se virou para minha irmã e a cumprimentou com dois beijos no rosto.
Antes que eu pudesse dizer algo, Inácio já tinha se voltado novamente para o meu pai:
- Se o senhor permitir, gostaria de levar a Tessa para jantar.
- Claro, meu filho – papai respondeu, surpreso.
Nenhum de nós esperava aquela reverência. Me perguntei se estava num daqueles livros da Jane Austen. De Batman a Mr. Darcy em fração de segundo.
- Prometo devolvê-la em segurança, mais tarde.
- Tudo bem, contanto que não seja tão tarde assim – papai emendou.
Tive vontade de rir. Ele tinha entrado no clima século XIX. Estava se comportando como um daqueles pais possessivos, o que não combinava nem um pouco com ele. Estreitei os olhos e o encarei. Ele sustentou o meu olhar. Que cara de pau!
- Não se preocupe, seu Alberto. Ficarei atento ao horário – Inácio respondeu, com tranquilidade.
Há tempos não via papai abusar da sorte assim. Devia estar se divertindo.
Assim que pisamos na calçada, Inácio segurou a minha mão, me olhou dos pés à cabeça e disse:
- Você está maravilhosa!
Então, eu o puxei pela cintura e o beijei, em um de meus impulsos intempestivos. O meu atrevimento foi instantaneamente correspondido.
Quando entrei no carro, perguntei:
- Aonde vamos?
Antes de responder, ele encarou o espelho retrovisor e limpou as marcas de batom em seu rosto.
- Quero outras mais tarde – brincou.
Continuei esperando a resposta. E confesso que fiquei um pouquinho irritada com ele. Gosto de saber para onde estou indo. Não me agrada nem um pouco ficar na incerteza. Sinto-me como uma cega num tiroteio.
- Não é um lugar muito conhecido. É pequeno, mas tem uma comida fantástica. Fica no Vale do Sol – ele explicou, percebendo o meu incômodo. Fica tranquila, não vou sequestrá-la.
De fato, isso seria uma péssima ideia. Enquanto muitas mulheres provavelmente se derreteriam com essa possibilidade, eu não podia nem ouvir falar nisso. Prezava a minha liberdade de ir e vir, de decidir, de querer ou não querer, acima de tudo. Fiquei horrorizada quando Vânia, uma colega de trabalho, comentou que o marido estava planejando uma viagem surpresa no aniversário de casamento deles, e que ela só conheceria o destino quando chegassem lá. Eu nunca me submeteria a uma coisa dessas. E, para completar, preciso dizer que sempre considerei a tal Síndrome de Estocolmo uma maluquice. Como alguém pode se apaixonar por um sequestrador?
Saber para onde estávamos indo me tranquilizou.
O restaurante era pequeno e charmoso, com uma atmosfera aconchegante. Sentamos, lado a lado, em uma mesa de canto, previamente reservada. A música ambiente era suave e agradável.
Aproveitei a oportunidade para saber mais sobre ele. Até então, ele não tinha me dado muita chance para isso. Estava sempre perguntando sobre mim.
E foi aí que soube de uma história triste. A história do acidente que vitimou seus pais havia quatorze anos. Filho único, Inácio perdeu o pai e a mãe, um casal amoroso e suficientemente feliz, na mesma noite, em um acidente trágico. Voltando do sítio da família, em um domingo à noite, o carro do casal colidiu de frente com um cavalo preto, que, ninguém sabe explicar porque, estava parado no meio da estrada. Inácio sempre ia com eles nessas viagens, mas, naquele final de semana, decidiu ficar estudando para o vestibular, que se aproximava. A notícia da morte dos pais o devastou, contudo ele percebeu que não poderia se render à tristeza e ao desespero. Lutando com as armas que tinha, resolveu seguir em frente. Mudou-se para a casa de sua tia Olívia, irmã de sua falecida mãe, com quem viveu até se formar. Achei surpreendente que o acidente tenha ocorrido em outubro e que, em janeiro, ele tenha sido aprovado no disputado vestibular de Medicina.
- Como você conseguiu? - eu perguntei.
- Não sei, Tessa. Mas algo me dizia que devia isso a eles.
Lembro-me de ter sentido uma admiração profunda por ele e de ter pensado que, se eu fosse uma daquelas mulheres que sonham em ser mães, este seria um ótimo pai para os meus filhos.
Deixei então esses pensamentos complexos de lado e olhei para o Cavaleiro das Trevas diante de mim, e não pude deixar de pensar que ele se parecia cada vez mais com o Bruce Wayne. A perda dos pais era emblemática. Contudo, guardei isso para mim. Não tinha a menor intenção de remexer em suas feridas.
Mas tinha algo que eu realmente precisava saber. A gente estava se conhecendo, era hora de pontuar algumas coisas. A história dos pais, de certa forma, me deu a abertura necessária para abordar a questão.
- Me diz uma coisa, Inácio: você quer ter filhos?
Ele não pareceu surpreso com a pergunta.
- Olha, Tessa, vou ser bem sincero com você. Nunca pensei muito sobre isso, mas sempre achei que teria. Talvez porque seja esse o caminho natural da maioria das pessoas. No entanto, eu não morreria se não tivesse. Não acho que casar, ter filhos, essas coisas, sejam o objetivo da vida. Podem fazer parte, ou não.
Aquilo tocou o meu coração, de forma inesperada. Nunca acreditei em almas gêmeas, mas me lembro de ter pensado que ele poderia ser a minha.
O resto da noite foi perfeito. A comida era ótima, e a conversa fluía naturalmente entre nós.
Quando ele me deixou na portaria do meu prédio, lamentei que aquela noite tivesse acabado.
Contudo, aquela foi a primeira de outras tantas. Em pouco tempo, estávamos namorando sério. Não sei em que momento mudamos de status, pois isso aconteceu de forma natural, como tudo entre nós. Mas me lembro muito bem da primeira vez em que fui ao apartamento dele. Já estávamos juntos há, mais ou menos, um mês.
- Finalmente - eu disse, quando ele abriu a porta.
Era do jeito que eu imaginava. Minimalista, em todos os aspectos. Como eu concordava que, no que toca à decoração, menos é mais, adorei.
Ele me ofereceu uma taça de vinho branco. A essa altura, ele já sabia que vinho tinto me dava enxaqueca. Então, colocou Clocks para tocar. Eu havia dito a ele que essa música era uma espécie de marco para nós, e, embora não fosse fã do Coldplay, ele fazia isso para me agradar.
Deixei a taça sobre o aparador e o abracei. Nunca imaginara que fosse me envolver com um homem em tão pouco tempo. Antes dele, eu não tinha tido nenhum relacionamento significativo e duradouro. Talvez tenha sido esse o click para o que fiz a seguir.
De olhos bem abertos, eu o beijei, enquanto guiava uma de suas mãos até o fecho lateral do meu vestido. Assim que ele percebeu a minha intenção, não precisei mais guiá-lo. Tudo aconteceu muito rápido. Em pouco tempo, estávamos em seu quarto, e eu vestia apenas as minhas lingeries. Nesse instante, me forcei a ser sincera com ele. Até então, nosso relacionamento estava apoiado na sinceridade, e eu gostava disso.
- Preciso te contar uma coisa.
Ele me olhou surpreso.
- Nunca fiz isso.
- Nunca fez o quê?
Pela forma com que ele voltou a pergunta para mim, deduzi que ele não tinha a mínima ideia do que eu ia dizer.
- Sexo – respondi.
Ele demorou alguns instantes para compreender.
- Nunca?! - perguntou, incrédulo.
- Não – confirmei. E já emendei a explicação: Estava me guardando para alguém especial.
Sei o quanto isso soa clichê, mas é a mais pura verdade. E, sim, sempre fui um poço de contradições, eu sei. Mas quem não é? No meu íntimo, eu sentia que a hora ainda não tinha chegado, até conhecer Inácio. Não importava que já tivesse 22 anos. Poderia ter 30, ou mais. Não me imaginava fazendo isso com qualquer um, nem me jogando na cama de alguém apenas para descobrir como era dormir com um homem. Mas nem todo mundo era compreensivo comigo. Já precisei trocar de ginecologista uma vez, porque a médica que me atendia achava que eu era anormal.
Inácio ficou completamente estático. Ele não disse, mas sei que pensou “para tudo!”. Então, foi ao banheiro de sua suíte, pegou um roupão felpudo preto e o colocou sobre os meus ombros. Entendi que ele queria que eu o vestisse, o que fiz. Em seguida, ele me puxou para a cama, onde sentamos, frente a frente.
- Obrigado por contar – ele disse.
- Não sei se estou feliz. Estraguei tudo.
- Você não estragou nada. É só que... Não pode ser desse jeito.
- Por que não?
- É a sua primeira vez...
- E daí?
- Quero que seja especial.
- E por que não seria?
- Não sei explicar, mas não me sinto à vontade. Deixa eu pensar melhor sobre isso, me preparar, senão vou acabar me sentindo canalha, está bem?
Embora eu já estivesse no “clima”, entendi o que ele quis dizer. E fiquei intimamente feliz por seu cuidado comigo.
Voltei intacta para casa naquele dia. Apenas uma semana depois tivemos a nossa primeira noite de amor.
Inácio cuidou de tudo, nos mínimos detalhes, com um carinho infinito. Encheu o apartamento de velas e flores. Eu não precisava de nada daquilo, mas fiquei comovida com a sua delicadeza. Nada foi rápido desta vez. Nem por isso foi menos impressionante. Quando pousei a cabeça no travesseiro aquela noite, eu já tinha certeza de que o amava.
Meu pai morreu um mês depois. Acordei certa manhã e descobri que ele não respirava mais. Chamei uma ambulância, mas, no fundo, sabia que era tarde demais.
Tive muito medo de contar à Nina. Ela estava prestes a ganhar o bebê. Inácio foi comigo à casa dela e, juntos, demos a notícia.
Enterramos meu pai no dia seguinte. Não tive forças para voltar para casa e acabei passando aquela semana no apartamento de Inácio.
Quando senti que estava pronta para voltar, comecei a arrumar as minhas coisas. Ao me ver juntando roupas e objetos pessoais, Inácio disse:
- Por que não fica em definitivo?
Achei que tinha ouvido mal.
- Como?
- Por que não se muda para cá?
- Por um tempo?
- Não, Tessa, para sempre.
Aquele “para sempre” foi impactante.
- Você não acha precipitado? Estamos juntos há pouco tempo...
- E que importância tem isso?
Eu sabia que ele tinha razão. O que sentíamos um pelo outro não tinha nada a ver com o tempo em que estávamos juntos. A grande questão, no meu ponto de vista, era o fato de termos convivido pouco tempo debaixo do mesmo teto. Será que sobreviveríamos a esse teste? Naquela semana, eu estava de luto, e Inácio fazia de tudo para me agradar. Mas, e quando entrássemos na rotina? Será que ele seria tão paciente assim? Seria tolerante com as minhas manias? Saberia respeitar o meu espaço? Como ele iria lidar com a minha necessidade de ficar só, comigo mesma? E as necessidades dele, quais seriam?
Depois de muita conversa, acabei cedendo. Mas permaneci relutante por um tempo. Tinha muito medo de as coisas darem errado. Seria péssimo, já que eu estava tão apaixonada por ele.
Os primeiros seis meses foram um período sabático. Ao final deles, concluí que, em geral, nos saímos muito bem. Inácio era uma pessoa tranquila e paciente. E o mais importante: era reservado e também gostava de ficar sozinho. Compreendíamos a “solidão” do outro, o que facilitou demais a nossa convivência.
Nove meses depois de termos juntado nossos trapinhos, fui aprovada no concurso público para consultora jurídica da Assembleia Legislativa. Comemoramos com uma viagem de cinco dias a Monte Verde. Na volta, pedi exoneração do antigo cargo e dei início a uma nova carreira.
Tudo parecia corresponder ao script, até que Inácio chegou em casa um dia e disse:
- Acho que devíamos nos casar.
- Já estamos casados – respondi, achando graça.
- Assinar os papéis, eu quero dizer.
- E que diferença isso faz?
- Formaliza o nosso compromisso.
- Você precisa de formalidade?
- Precisar, eu não preciso. Mas gostaria disso.
Pensei por um momento. Nunca achei que fosse necessário. Meus pais assinaram os papéis, e isso não impediu minha mãe de ir embora quando desistiu da família.
Contudo, eu não tinha dúvida dos meus sentimentos por ele. Se era importante para Inácio, por que não?
Três meses depois, oficializamos nossa união. Contrariando todas as expectativas, acabei gostando da hierarquia que aqueles papéis conferiam à nossa relação.
O único problema foi que, com o casamento, as pessoas começaram a nos perguntar, com mais frequência, quando viriam os filhos, e, ao dizermos que não tínhamos planos nesse sentido, o espanto era geral. Comecei a ter que dar explicações sobre as razões de não querer ser mãe, o que era cansativo e desgastante, uma vez que as pessoas sempre tentavam me convencer do contrário. Inácio sempre foi muito companheiro nessas horas. Seria bem mais fácil para ele dizer “a Tessa não quer”. Mas ele nunca fazia isso. Resumia a questão com um “nós não queremos”, o que até me convenceu por um tempo. Era mais cômodo acreditar nisso. Talvez eu continuasse acreditando até hoje, não fosse a urgência dele em congelar parte de seu sêmen, quando descobriu o câncer nos testículos.
Foi um impacto para nós. Inácio não estava sentindo nada, mas um exame de rotina apontou o tumor. Quando ele me contou, senti que um buraco se abria no chão, sob os meus pés. A cirurgia aconteceu um mês depois e, em seguida, vieram as sessões de quimioterapia. Tirei licença do trabalho para ficar por conta dele. Olívia sempre se oferecia para me substituir em minha vigília, mas eu não arredava pé, não saía do lado dele por nada. Não me imaginava em outro lugar que não fosse ali. Inácio perdeu os cabelos, e eu perdi muito quilos. Mas nós sobrevivemos. E, por fim, ele implantou próteses nos testículos.
Eu tinha motivos para comemorar quando tudo chegou ao fim. No entanto, permaneceu um incômodo. Por que Inácio fizera tanta questão de reservar parte de seu sêmen e, cuidadosamente, congelá-lo em um banco, se já havíamos concordado que não teríamos filhos? Ele tinha mudado de ideia, ou a difícil experiência o tinha feito enxergar o que, de fato, queria? Diante da possibilidade concreta de não mais poder ter filhos, Inácio percebeu que não estava disposto a abrir mão disso?
          Tudo isso me confundiu, mas eu não queria confrontá-lo e correr o risco de prejudicar a sua recuperação. Assim, deixei as coisas em stand by.
           Um ano e meio se passou, e continuamos em suspenso. No início, Inácio chegou a acreditar que nunca mais teria uma ereção. Contudo, o tempo se encarregou de mostrar que essa situação era transitória. As coisas entraram nos eixos, não fosse aquele sêmen congelado em um banco lá fora, que não saía dos meus pensamentos.
           Aos 32 anos, eu ainda era nova para ter filhos, embora soubesse que a minha fertilidade já declinava desde os 25. O fato é que eu não queria. Mas, e se isso fosse essencial para ele? Chegaríamos a um impasse?


(O capítulo 2 será publicado na próxima quarta-feira, dia 16 de outubro.)
 

Texto: Cynthia França
Revisão: Arilma Peixoto
Colaboração: Anita Lima, Licínio Porto, Lorena Porto e Lucíola Pereira

20 comentários:

  1. Adorei o novo livro. Parabéns Cinthya . Foi muito legal a ideia de postar aqui cada capitulo do livro. Já li o primeiro ,espero ansiosamente o próximo . Deixo aqui a minha satisfarçao,pois , além de ser uma ótima pessoa é uma ótima escritora.

    PS: meu cachorro também faz xixi quando eu chego fica emocionado . rsrs

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  2. Excelente!
    Já estou ansiosa pelo próximo...

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  3. Ai ai ai, nao sei se devia ter começado a ler... já sinto o cheiro de um novo "vício" ! Adorei!

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  4. Muito bom Cynthia! Adorei e já espero ansiosa pelo próximo capítulo!

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  5. Amiga...sempre surpreendendo! Adorei e adoro ler o que escreve! Obrigada por confiar em mim!

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  6. Adorei Cynthia, já estou aguardando o próximo capítulo! Só que na próxima quarta, vou ler depois do dever das meninas... elas ficaram muito bravas porque não dei atenção para elas..... rsss.... já estou viciada novamente! Bom que desta vez vou ler com calma, seguindo suas publicações, e não em 24 h como li os outros dois livros! Parabéns!

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  7. Muito bom, Cynthia. Texto fluido e envolvente. Parabéns! Aguardando os próximos capítulos.

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  8. Parabéns! Você sempre consegue me fazer rir e me emocionar com simplicidade. Abs. Elissama

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  9. Adorei Cynthia, não conseguia parar de ler! Parabéns amiga querida!

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  10. Muito bom! Queria só dar uma olhadinha e não consegui parar de ler! Parabéns!

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  11. Olá querida amiga Cynthia,

    muito legal o primeiro capítulo, envolvente, bem escrito, dinâmico e intenso! Em um único capítulo você conseguiu expressar já um enredo de muitos momentos da vida desses personagens!

    Agora é aguardam semana que vem, pra ver o que vem por aí?

    Vou apelidar seu projeto de "Toda quarta...", ok?

    Meus cumprimentos e um cordial abraço!
    Adriano.

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  12. Ótimo, Cynthia! O primeiro capítulo já diz o que será todo o livro, uma deliciosa companhia! Seu estilo é inconfundível, prende do início ao fim!

    Grande beijo! Parabéns por todas essas conquistas!
    Rossana

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  13. Muito bom Cynthia, parabens por mais esta publicação!
    Tenho a impressão que a protagonista ainda vai nos fazer refletir muito, levantar questões que ha muitos anos, para não dizer até seculos, influenciam a cultura em que vivemos e que merecem ser vistas com novos olhares. Gosto de livros assim, que entretêm e nos levam a pensar ao mesmo tempo.
    Aguardando proximos capitulos!
    Um grande abraço,
    Claudio.

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  14. Cynthia, você aborda um tema polêmico, que certamente vai despertar nos leitores opiniões as mais diversas. Qualquer que seja o desfecho, não haverá unanimidade. Mas isso não é problema, pois segundo Nelson Rodrigues "toda unanimidade é burra". O que virá amanhã?

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  15. Execelente Cynthia!!!!!Já estou curiosa para os próximos capítulos!!!!!

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  16. Ontem quando fiquei sabendo sobre esse seu novo projeto fui dormir feliz e com o computador sobre o colo, não queria parar de ler! Tinha a convicção de que ia me apaixonar pela leitura, assim como ocorreu com os 2 livros já publicados! Durante a leitura me vejo dando sorrisos, arregalando os olhos, fazendo fisionomia de apaixonada, respirando fundo, pois a sua escrita é carregada de emoção, realidade e temas grandes e sublimes. Você relata sobre o grande de forma simples e traduzido em pequenas atitudes do cotidiano, o que nos permite entrar nas suas histórias, sentirmos como os personagens dela! Que delícia, mais um livro para eu me apaixonar! Parabéns pelo dom e vocação! Thais Camilozzi.

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  17. Oi Cynthia! Sómente hoje é que pude ler o 1º capitulo e fiquei totalmente envolvida.Que maneira mais suave e envolvente de escrever .Já estou indo correndo para o 2º capitulo.Parabéns ! E que Deus mantenha esse adorável dom.
    Bjs,
    Valderez

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  18. Oi Cynthia! Sómente hoje é que pude ler o 1º capitulo e fiquei totalmente envolvida.Que maneira mais suave e envolvente de escrever .Já estou indo correndo para o 2º capitulo.Parabéns ! E que Deus mantenha esse adorável dom.
    Bjs,
    Valderez

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  19. Adorei o primeiro capítulo, correndo para o segundo.... parabéns!!!! Raquel Sad

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